Autora traz o texto erótico "mais subjetivo, delicado, implícito"
Agenda Cultural
Escritora prepara o lançamento de "As filhas de Lilith", livro de poesia que dá voz as mulheres transgressoras
08 de agosto de 2023
Cefas Carvalho
Nascida em Acari e criada em Parelhas, ambas cidades do Seridó Potiguar, Jeanne Araújo reside em Ceará-Mirim, município de tradição canavieira mas situado na Região Metropolitana de Natal. Professora, formada em Letras com especialização em Literatura e Ensino, trabalha na rede pública estadual e municipal de Natal. Como escritora, publicou os livros de poesia "Monte de vênus", "Corpo vadio" e "Cicuta e cilício", as novelas "Cercas de pedras" e "Combustão" e recentemente o livro de crônicas "A casa dos afetos". Foi premiada em diversos concursos literários locais e nacionais. Faz parte da ACLA - Academia Cearamirinense de Letras e Artes e do movimento coletivo nacional Mulherio das Letras. Prepara seu novo livro de poesia, "As filhas de Lilith" e nesta entrevista fala sobre isso e temas diversos como a literatura como reação das mulheres ao silenciamento histórico e também a poesia produzida no Seridó. Confira:
Você tem três livros de poesia publicados, "Monte de vênus", "Corpo vadio" e "Cicuta e cilício". Acredita que existe um conceito, algo que os liga? Como avalia a poesia de cada um deles?
Eu acredito que o conceito que liga meus livros de poesia é o feminino, a condição feminina. Trago para minha escrita essa voz que já foi tão silenciada e minha poesia quer ser essa mão que arranca a mordaça. Escrevo sobre mulheres e dou voz a elas. Mágoas, amores, desejos, dores, corpo e a eroticidade que tudo isso carrega. "Monte de Vênus" traz uma mulher sonhadora, que acredita nos sonhos e começa a dar seus primeiros passos na feitura dos amores. Em "Corpo Vadio", essa mulher já tem consciência do seu corpo e do seu papel no mundo. Carrega uma eroticidade e sabe como usar isso a seu favor. Em "Cicuta e Cilício" essa mulher já é senhora de si, se doa às paixões e aos amores, sofre, mas levanta-se e enfrenta seus infortúnios de cabeça erguida. Quando eu trago essas mulheres para a minha escrita, tornamo-nos uma só, como aquelas bonecas russas, as Babuskas. Somos todas uma só, embora diferentes, temos inúmeras camadas. Mas, nossa condição é a mesma.
Na prosa, você publicou uma novela curta, "Cercas de pedras", que aborda os temas da loucura e do papel da mulher na sociedade, inclusive com a protagonista se chamando Blanche, referência evidente à personagem de "Um bonde chamado desejo", de Tennesse Williams. Como foi escrever esse livro e enfocar temas tão delicados e atuais?
"Cercas de Pedras" foi meu primeiro voo solo na prosa e foi desafiador escrevê-lo. Principalmente pelo tema, a loucura. O enredo traz a personagem Blanche que, depois de sofrer muita violência familiar e social, termina sendo internada em um manicômio e tem que escrever um diário como forma também de tratamento para purgar seus tormentos. Eu sempre tive esse olhar amoroso sobre a questão da loucura desde que conheci o poema de Ismália (Alphonsus de Guimaraens), ainda lá na infância. O título, Cercas de Pedras nos remete à prisão, às cercas emocionais que nos aprisionam, nos silenciam e muitas vezes, nos enlouquecem. Mas Blanche não se cala, ela grita através do diário e também arranca a mordaça da dor e do medo e assim, espera alcançar uma redenção.
Seu livro mais recente, "A casa dos afetos" consiste em uma compilação de crônicas que escreveu ao longo dos anos. Como se vê como cronista e como foi reunir esses textos para o livro?
“Na Casa dos Afetos” foi uma gratificante surpresa. São textos que foram escritos nas minhas redes sociais, sem nenhuma expectativa de que se tornasse um livro. Na verdade, eu não tinha nenhuma pretensão de publicar esses textos porque achava-os muito pessoais. Mas algumas pessoas gostavam e, meu editor, Cleudivan Jânio, da CJA, me convenceu a publicá-los. A surpresa é que o livro de crônicas foi muito bem recebido pelos leitores e eu fiquei muito feliz. Confesso que fiquei com medo de lançá-lo, porque a minha estrada literária é a poesia, então quando escrevo prosa e é bem recebida pelo público leitor, fico muito feliz. Mas sei que ainda há muito chão para caminhar, um longo caminho a percorrer na prosa. Sigo aprendendo.
Você nasceu em Acari e passou a juventude em Parelhas, ambas cidades do Seridó potiguar, mas mora há décadas em Ceará-Mirim na Região Metropolitana de Natal, mas que é um município de origem canavieira e com imensa área rural. Como essas mudanças afetaram sua visão do mundo e impactam a sua literatura? E qual a relação da sua obra com o Seridó?
Eu nasci em uma região que sofre muito com a seca, que inclusive está em processo de desertificação, segundo os estudiosos. Mas o Seridó, apesar da secura, é muito belo. Tem montanhas e inúmeros açudes, apesar de que só chove durante 4 ou 5 meses. No restante dos meses, é seca brava. E eu trago comigo todos os lugares que vivi refletidos na minha escrita. A seca, as montanhas, o verde, o cinza. O litoral também está presente, mas o sertão bem mais. Não tem como escrever sobre o que não conheço. "Cercas de Pedras" está ambientado justamente no sertão e depois no litoral, talvez por isso, eu tenha gostado tanto de tê-lo escrito.
Sua obra poética é considerada com uma forte carga erótica, seja pelo viés do corpo como empoderamento (Corpo vadio e Monte de Veñus) seja pelo prisma da ambiguidade pecado/perversão (Cicuta e cilício). Como avalia o erotismo de sua poesia e como vê a poesia erótica atual?
O erótico na minha poesia não foi uma escolha. A poesia foi me levando pelo viés erótico naturalmente. Mas é uma poesia com um erotismo mais subjetivo, sublimado, delicado, implícito. Claro que também tem o caráter político, de resistência, porque através desse corpo feminino erótico e sensual, eu transgrido contra uma sociedade conservadora, machista e patriarcal. Passamos muito tempo nos escondendo através de pseudônimos para escrever literatura, que bom que isso mudou, mais e mais mulheres reivindicando para si o lugar de fala no lugar da voz patriarcal imposta durante tantos séculos.
Acredita que existe uma literatura/poesia especificamente femininas, que só poderiam ter sido escritas por mulheres? Na mesma pergunta: homens leem o que mulheres escrevem e publicam?
Há um preconceito ainda muito grande com a literatura escrita por mulheres. E literatura escrita por mulheres não é uma sub literatura. Mas ainda há o preconceito. Concordo com Alice Ruiz quando ela diz: “o tempo inteiro sou uma mulher que escreve.” Escrevemos aquilo que vivemos, que sentimos. Ficamos muito à vontade para falar sobre nosso universo e condição. Eu não conseguiria escrever tão bem sobre o universo masculino como um homem. Acredito que o mesmo se dá de lá pra cá. Somos distintos e temos modos diferentes de vermos nosso espaço, por isso, escrevemos melhor sobre aquilo que conhecemos mais profundamente. Os homens estão lendo mais literatura escrita por mulheres, mas ainda é muito pouco. As mulheres estão produzindo muito, esses livros precisam chegar mais facilmente às bibliotecas públicas, por exemplo.
Você faz parte ativamente do movimento coletivo Mulherio das Letras. Como observa este movimento e qual o papel e importância dele no sentido de fomentar a produção de mulheres escritoras e divulgar o trabalho delas?
Participo do Movimento desde o primeiro encontro, em João Pessoa, em 2017. O Mulherio das Letras tem trazido as escritoras para o centro do palco literário. A luta é também por mais espaço no mercado editorial. Nos reunimos presencialmente todos os anos para debatermos literatura, mercado editorial e estratégias de publicação e participação em eventos literários, onde até pouco tempo atrás só homens participavam. Pelo menos a grande maioria era de homens nesses espaços. Premiação de literatura escrita por mulheres, então, nem pensar. Hoje, já estamos sendo premiadas, estamos mostrando nossa literatura e tudo isso depois que começamos com esse movimento importantíssimo.
Atualmente muitas poetas mulheres de destaque e premiadas nasceram (como você) ou moram no Seridó. Existe uma sensação de "movimento", como algo coletivo, das poetas seridoenses? E o que explica esse "surto" de poetas relevantes na região?
A região do Seridó tem uma tradição literária. As escritoras seridoenses trazem uma poesia forte, com uma carga cultural regional muito grande. Acredito que a questão da leitura desde a mais tenra idade tem muito a ver com isso. O Seridó é uma região em que a educação básica trabalha muito o livro, as leituras. E, uma coisa leva à outra. A criançada começa lendo, daqui a pouco está escrevendo. É uma conta simples de se fazer. Há também vários projetos culturais na região como o Casarão de Poesia, em Currais Novos. Esses projetos são importantíssimos para a cultura e literatura seridoense. O Sertão do Seridó carrega essa tradição nas vozes femininas que se levantam daquele chão, nossa poesia carrega a cultura e as tradições do povo seridoense. Amamos aquele pedacinho de terra, talvez por isso, o “surto” de poetas na região.
Como vê a interação entre regiões no Brasil? No Sul-Sudeste leem o que é publicado no Norte/Nordeste, por exemplo, na sua opinião?
Eu acredito que estamos conseguindo, aos pouquinhos, levar nossa literatura para outras regiões do Brasil. É um "trabalho de formiguinha" que vai dando resultados. Já temos vários autores nordestinos premiados. Maria Valéria Rezende foi premiada com o Jabuti e ultimamente muitos autores do nordeste estão chegando à final dos grandes prêmios. É uma forma de fazer nossa literatura chegar nos grandes centros, principalmente no eixo Sudeste e Sul. As redes sociais também têm ajudado nessa divulgação. Um autor vai conhecendo outro, vai se formando uma rede literária, digamos assim. E os livros vão circulando.
Você vem anunciando nas redes sociais poemas para um projeto que chama de "Filhas de Lilith". Será seu próximo livro publicado? Quais seus próximos projetos?
"As Filhas de Lilith" é um projeto em que venho trabalhando desde o ano passado. Trata-se de um livro de poemas sobre as mulheres transgressoras, as que não aceitam serem silenciadas, pisadas, invisibilizadas. Mulheres que estão sempre na luta por seus espaços, principalmente na questão do próprio corpo. Já que o corpo é nosso, podemos fazer o que quisermos com ele. Esse livro também tem o viés erótico na sua feitura. Estou trabalhando também com uma novela que tem como tema as mulheres seridoenses e seu silenciamento na colonização daquele lugar. Quero contar essas histórias. Afinal, o seridó não foi colonizado apenas por homens, não é mesmo?
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