Em novo livro, Matias encontra o horror psicológico, a ficção científica e o realismo urbano

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João Matias: "O movimento de sair de um lugar e pertencer a outro é uma experiência lliterária para

Autor e roteirista cearense prepara o lançamento do novo livro de contos, "As Madrinhas da Rua do Sol", pela Editora Caos e Letras

30 de agosto de 2023

Cefas Carvalho

João Matias nasceu em Juazeiro do Norte (CE), mas é radicado em João Pessoa (PB). Escritor, sociólogo e professor. É doutor em sociologia e ensina na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Publicou os livros "O Lugar dos Dissidentes" (2019) e "O Vermelho das Hóstias Brancas" (2010) e em 2022 o elogiado "Os santos do chão bravo". Possui contos publicados em antologias diversas, sendo um dos editores da Revista Blecaute de Literatura e organizador do Encontro de Literatura Contemporânea, na cidade de Campina Grande (PB). Como roteirista, possui roteiros adaptados aos quadrinhos, tendo também atuado junto ao argumento do longa-metragem brasileiro "O Nó do Diabo", dentre outros trabalhos. Faz participações no podcast Lavadeiras do São Francisco, sobre literatura, e mantém textos sobre literatura e cultura junto ao site LiteraturaBR. Prepara o lançamento do novo livro de contos, "As Madrinhas da Rua do Sol" (pela Editora Caos e Letras) sobre "deixar a capital da Parahyba, como outras do nordeste brasileiro, uma cidade atravessada pelo horror, pela ficção científica e pela distopia urbana. Uma viagem louca pelos escombros de um passado-presente-futuro insólito". Confira a entrevista:

 

Seus primeiros livros publicados foram "O Lugar dos Dissidentes" (2019) e "O Vermelho das Hóstias Brancas" (2010). O que eles têm em comum e qual a avaliação que faz deles atualmente?

Creio que aí já tivesse havido ali um desejo de buscar uma linguagem que materializasse um universo nordestino que flertasse com a violência, o insólito e a ficção científica. Sendo o Vermelho um livro da minha primeira produção, acho que a escrita nele ainda não foi amadurecida o suficiente para fazer frente ao que hoje eu consideraria um projeto literário sólido. Já pelo O Lugar dos Dissidentes tenho um carinho especial, foi meu primeiro livro de microcontos; por isso, considero também um primeiro livro experimental.

 

Em 2022 você publicou o elogiado "Os santos do chão bravo", livro de contos interligados que abordam um interior nordestino de forma não convencional, com ênfase na violência e comportamento humano. Como foi o processo desse livro?

Os santos eu escrevi em janeiro de 2019, num intervalo de três semanas, na biblioteca do Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa. Primeiro, pensei o universo temático do livro: a Chão Bravo mais árida do que o tempo e a Cidade Grande cuja noite dura um dia inteiro na mente e na personalidade dos seus habitantes. Entre uma e outra, um processo: a Chão Bravo que vai se tornando Cidade Grande nos espaços e na consciência de seus personagens. Os imigrantes estão lá, mas estes são os colonizadores. Os oprimidos também, e são os trabalhadores que, em "As Madrinhas da Rua do Sol", migraram pra capital da Parahyba.

 

Como roteirista, você possui roteiros adaptados aos quadrinhos, tendo também atuado no argumento do longa-metragem "O Nó do Diabo". Fale sobre sua experiência nesse campo. E como o cinema afeta sua escrita?

Diretamente. Creio que minha formação como escritor tenha passado pela minha experiência na produtora Vermelho Profundo e no processo de escrita do argumento e das primeiras fases de um dos roteiros do "Nó do Diabo". Foi lá que aprendi a pensar uma narrativa seriada, em que a interconexão entre as histórias participasse de um enredo maior, de um universo temático. Não que não já tivesse observado isso na literatura de Dalton Trevisan, de Ronaldo Correia de Brito, de Silvina Ocampo, dentre outros. Acontece que a práxis do cinema me treinou para pensar nas narrativas dentro de um universo temático. Também me fez pensar na escrita como algo mais imagético, ágil, espacial. Embora meu modo de escrever um roteiro cinematográfico ainda seja muito literário, a ambiguidade entre um e outro me interessa. Mesmo que depois eu mexa no roteiro e o torne mais cinematográfico. De toda sorte, ambas as linguagens são ricas e muito interessantes dentro de seu meio e, como comprova o finado Cormac Mccarthy, tem suas conexões.

Você nasceu em Juazeiro do Norte (CE), mas é radicado há tempos em João Pessoa (PB). Como essa migração impactou sua maneira de ver a vida e a literatura?

Acho que o movimento de sair de um lugar e pertencer a outro é uma experiência que diversos autores tiveram e materializaram isso de alguma forma em sua literatura. Tanto no Os Santos do Chão Bravo como no As Madrinhas da Rua do Sol há imigrações, partidas, despedidas e chegadas. Ambientes novos que se mostram no horizonte. Uma paisagem que está entre o Ceará e a Parahyba, mas também entre outros estados do nordeste.

Como sociólogo e professor universitário, pensa que essas atividades influenciam no que você escreve? Como avalia a educação superior no Brasil atualmente? Os universitários de maneira geral leem literatura brasileira contemporânea?

Creio que a primeira questão deveria ser respondida por um leitor ou leitora. Acho que o olhar mais aguçado para questões atinentes ao meio social e ao nordeste em especial podem influenciar naquilo que escrevo. De resto, acho que a educação superior no Brasil passou por momentos difíceis nos últimos anos e estamos, à medida do possível, retomando aos poucos com algumas melhorias. E quanto aos universitários, acho que há um movimento cada vez maior, por parte sobretudo de clubes de leitura, em descobrir a literatura brasileira contemporânea, até mesmo mais do que descobrir os clássicos.

Você prepara o lançamento de seu novo livro de contos: "As madrinhas da Rua do Sol". definido como "um encontro com o horror psicológico, a ficção científica e o realismo urbano". Como foi o processo desse livro e qual sua expectativa com ele?

Este livro foi idealizado e escrito no princípio de 2022. O primeiro conto que escrevi dele foi o “Pensando em Glória”, que abre o livro. Tive a ideia inicial de dar uma continuação possível ao universo do Os Santos do Chão Bravo, mas desta vez com um foco na imigração de trabalhadores das zonas rurais para a capital da Parahyba, João Pessoa. Vivo em João Pessoa desde 2015 e quis imprimir neste livro a perspectiva de uma cidade assombrada por fantasmas destes imigrantes, pelas relações tensas de adaptação a um meio que não é o deles e de como a cidade poderia ser assombrada por estes e outros demônios, oriundos do que chamo de terror urbano. Um terror, portanto, que escapa da percepção daquilo que, na cidade, provoca medo entre seus habitantes. Sequestros, roubos, furtos, assaltos etc. Assim, os personagens vivem sua própria situação de como o horror psicológico se instala em suas vidas. Como é um livro que se pretende a contar a história de uma cidade no passado, presente e futuro, também há contos que dialogam com a ficção científica, é o caso do “Dia de finados” e “As madrinhas da rua do sol”; e também contos que desvelam uma situação insólita com relação ao passado, como é o caso do conto “Deserção”, que fecha o livro e se passa na revolta de Princesa Isabel em 1930.

 

Acredita que existe intercâmbio literário entre as regiões do país? No Sul/Sudeste se lê o que escritores nordestinos publicam?

O intercâmbio necessário está sendo mais fortalecido nos últimos anos. Historicamente, e está aí Celso Furtado para comprovar, a distância e a desintegração nacional por fatores históricos, sociais e econômicos promoveram um apartamento das duas regiões, inclusive em termos políticos, culturais e literários. Os autores nordestinos que quisessem ser lidos tinham que ir morar no Rio de Janeiro. Já não é mais necessário. Creio que todos os dias convidam algum autor nordestino de sucesso para ir morar no Sul e Sudeste, porém alguns continuam escrevendo de onde moram ou onde nasceram. E tudo bem.

A grande questão é que esta disparidade segue não apenas no distanciamento regional, mas ao nível das consciências: como a hegemonia (em termos gramscianos mesmo) da crítica literária e do jornalismo literário é do sul/sudeste, autores brancos e de classe média esta sempre será a lente através da qual estes e estas irão avaliar os autores de outras regiões, origens e identidades, por mais que se pretendam a uma ilusória isenção de avaliações e por mais que em momentos chaves reconheçam a qualidade e o sucesso de alguns. E que não passa disso: momentos chaves, dar o braço a torcer. O caso de Itamar Vieira Júnior e da recepção crítica às obras dele é emblemático neste sentido. Se acredita que esse seja um debate apenas sobre crítica literária (como se a estética, a crítica, estivessem acima do bem e do mal, da história e da sociedade), quando ele está repleto de questões históricas e sociológicas que, sim, também incidem sobre nossas estruturas psíquicas de avaliação, percepção e julgamento. Porém, no geral, creio que o Nordeste tenha sido bastante combativo em se impor e conquistar novos públicos, através do movimento #leianordeste, feiras literárias e movimentos políticos e culturais.

 

Quais suas influências literárias? E como vê a produção literária no Nordeste atualmente?

Minhas influências são diversas. Vêm desde a poesia, com Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Lenilde Freitas, Sophia de Mello Breyner Andresen, Zila Mamede, até à prosa, com Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, Silvina Ocampo, Ronaldo Correia de Brito, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, dentre outros. Internacionalmente, Flannery O’Connor, Cormac Mccarthy, Pepetela também são influências. De certa maneira, eu me guio para autores e poetas que saibam arquitetar bons espaços, boas imagens, narrativas pulsantes, um toque de regionalismo existencial e formulações semânticas precisas, econômicas, certeiras. É o caso de Dalton Trevisan, por exemplo. De resto, a produção literária recente também me serve de influência. Sou leitor e me deixo influenciar pelos meus contemporâneos, e assim aprendi a escrever na mesma escola de escritores talentosos, como Roberto Menezes, Bruno Ribeiro, Wander Shirukaya, Joedson Adriano, Thiago Lia Fook, Isabor Quintiere, Jennifer Trajano, Débora Gil Pantaleão, para ficar na Paraíba. Então, creio que a literatura nordestina está num momento vibrante, com obras e autores tão diversos quanto diversos são os gêneros literários e as formas de representar este Nordeste na literatura.