Juliana Linhares em sua estreia solo. Foto: Clarice Lissovsky
Reportagens
Álbum solo da artista natalense radicada no RJ traz parceria com Chico César e Khrystal, canção inédita de Tom Zé e participação de Zeca Baleiro
24 de março de 2021
Após anos de carreira à frente da banda Pietá, a cantora e compositora Juliana Linhares chega ao ouvinte com seu “Nordeste Ficção”.Com lançamento programado para esta sexta-feira (26), o primeiro álbum solo da artista, nascida em solo potiguar e fixada no Rio de Janeiro, foi imaginado, segundo ela, como um "roteiro de teatro, um romance de autoficção ou um docudrama cinematográfico". Tudo ligado ao que considera essencial: a música, a poesia nordestina e o significado real de pertencer a esta região.
“Queríamos que o trabalho trouxesse beleza e alegria irresistíveis, remetendo aos deliciosos LPs clássicos de Amelinha, Elba Ramalho, Cátia de França, Terezinha de Jesus e outros nomes da geração nordestina lançados na virada dos anos 1970 para os 1980”, explica. A artista também inclui a grandeza melódica e poética de compositores como Alceu Valença, Ednardo, Fagner, Belchior e Zé Ramalho e das gerações seguintes Chico César, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro, Lenine.
Ter esses artistas como referência é também querer falar do seu lugar: “Um desejo de abrir espaço para questionamentos sobre os significados de ser nordestino hoje”. Juliana vive no Rio de Janeiro desde 2010. A mudança deu a ela um lugar de observação privilegiado a respeito dos clichês com que o resto do país enxerga o Nordeste. “E se o Nordeste é uma invenção, como cantou Belchior, a arte segue sendo o meio para desconstruir narrativas. E criar outros nordestes possíveis”.
Produzido por Elísio Freitas com direção artística de Marcus Preto, o mesmo que assina este texto, “Nordeste Ficção” abre portas para todos esses encontros. Em 11 faixas, o álbum tem duas parcerias de Juliana Linhares com Chico César e uma feita com Zeca Baleiro, nomes fundamentais da geração 90. Traz a memória afetiva nordestina na regravação do clássico “Tareco e Mariola”, de Petrúcio Amorim. Apresenta tema inédito de Tom Zé, bastião da revolução tropicalista. Agrega compositores da nova geração: Posada, Moyseis Marques, Rafael Barbosa, Khrystal, Jessier Quirino e Caio Riscado. E conta com as participações de Letrux, Mestrinho e do próprio Zeca Baleiro.
Marcus Preto, além da direção artística, também assina o belo texto de apresentação da artista, reproduzido nesta notícia.
Silêncio compulsório
Há três anos, quando o grupo Pietá vivia um crescente de público e prestígio, sua vocalista Juliana Linhares pegou uma laringotraqueíte. Ficou completamente sem voz por uma semana. Para uma cantora, perder a voz é um acontecimento aterrador, que dispara todo o tipo de crise existencial. No caso de Juliana, o silêncio compulsório desengatilhou uma necessidade de se entender individualmente. Como seria a Juliana Linhares sozinha, dona de todas as decisões, dos erros e dos acertos do próprio trabalho? Logo nos primeiros dias, a cantora telefonou para Posada, cantor e compositor de origem sueca, criado em Pernambuco e radicado no Rio. E, em grunhidos, disse que estava começando a imaginar o que seria sua estreia solo. Não tinha definido nada ainda sobre os caminhos que escolheria, mas estava à procura da direção. Posada enviou três canções. Ela gostou das três, mas uma delas, “Bombinha”, deu à cantora o norte que buscava. O norte, não. O Nordeste.
Pode-se dizer que “Nordeste Ficção” começou a se desenhar a partir da chegada de “Bombinha”. A canção reflete sobre o sucesso e suas explosões. Segundo Juliana, seus versos retratam um sentimento muito comum entre os nordestinos que vão morar no Sudeste e passam a entender o significado de sucesso em outros termos. “Quem explode é bombinha/ Eu quero é cantar pros meus/ Deixe que eu mesma decido/ Que rainha sou eu”. Ou ainda: “E não quero ir pra Marte/ Quero ir pro Ceará/ Não vim aqui me exibir/ Eu vim aqui te buscar”.
A Invenção
Ao mesmo tempo em que curava seu problema vocal, Juliana mergulhava na leitura de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, do escritor e professor da UFRN, Durval Muniz.. Ficou completamente instigada pelo livro. Foi assistir à adaptação teatral feita pelo grupo Carmin e procurou o próprio Durval, que segundo ela foi muito receptivo. O diálogo com o autor resultou na canção que batizaria este álbum, “Nordeste Ficção”.
“Foi a música mais difícil de ser elaborada. Começou com a brincadeira de se imaginar olhando no espelho e vendo um cacto no reflexo. O mote inicial foi a lembrança dos mini-cactos onipresentes mesmo em apartamentos do Sudeste: aquela planta que ninguém rega, ninguém cuida, mas que segue firme na força de seus espinhos”. A partir dessa metáfora, Juliana escreveu a primeira parte da canção. Questionamentos dos estereótipos colados ao Nordeste deram a tônica da segunda parte. Irmão de Juliana, Rafael Barbosa, fechou com ela a canção.
Do livro de Durval Muniz, Juliana retirou também o texto que aparece na capa do álbum, escrito sobre o retrato feito por Clarice Lissovsky para o projeto gráfico de Ara Teles: “Pensar a região como uma entidade é perpetuar uma identidade forjada por uma dada dominação. Devemos pensá-la, sim, como uma construção histórica em que se cruzaram diversas temporalidades e espacialidades, cujos mais variados elementos culturais, desde eruditos a populares, foram domados por meio das categorias da identidade, como: memória, caráter, alma, espírito, essência. O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõe de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado das imagens e das falas-clichês, que são repetidas ad nauseum, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região.”
“Alegria revolucionária”
Juliana estava em Natal quando decidiu escrever ao compositor paraibano Chico César, arriscando o convite de parceria. Ele topou. E ela travou. Passou um mês até enviar a primeira letra, mas a resposta de Chico veio em uma hora e meia. Era “Embrulho”, prontinha. No mesmo dia, passaram a noite no telefone. Chico fez um discurso emocionado, argumentando que é absolutamente necessário se manter alegre para resistir. “Juliana, a alegria é revolucionária!” Animada, ela dedicou o dia seguinte a escrever algo nesse clima para enviar ao parceiro. Mais uma hora e chegou a “Lambada da Lambida”. A letra retrata um amor entre mulheres, afeto que precisa estar cada vez mais presente e naturalizado no cancioneiro nacional.
A dinâmica com Zeca Baleiro foi parecida. Assim que ele acenou afirmativamente para a parceria, Juliana buscou em seus escritos “algumas dores do tempo”, como definiu, e enviou a ele. Quando chegou a música pronta - que tem, desde a raiz, o estilo tão particular do compositor maranhense - ficou evidente que a voz de Zeca teria de estar também na gravação oficial. Ele topou. “Meu Amor Afinal de Contas” ganhou clipe dirigido por Mariana Moraes.
“Balanceiro” nasceu de um encontro pós-“Samba do Trabalhador”, a famosa roda carioca. Juliana, Sami Tarik e Khrystal foram para a casa de Moyseis Marques. Sentaram com o violão e o caderninho ao redor da mesa e começaram a tocar. Juliana foi anotando o que surgia. Todos saíram de lá realmente bêbados e, como é comum nesses casos, nem se lembraram da existência dessa composição. Mas Juliana encontrou o papel amarrotado em uma agenda. Ligou para Khrystal com a parte da melodia que ainda tinha na memória e fecharam a música. Para a gravação, convidamos o genial Mestrinho, que construiu um delicado diálogo da sanfona dele com a voz de Juliana.
"Aburguesar"
Caio Riscado é autor de “Armadilha”. Performer e professor universitário, ele já dirigiu shows do Pietá e do Iara Ira, projeto musical de Juliana com as cantoras Juliana Vargas e Duda Brack. Desde que Juliana contou do desejo de fazer um trabalho solo, Caio passou a enviar ideias. Fizeram “Armadilha” inspirados pelo “Grande Encontro” de Alceu, Elba, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho. A melodia da canção traz a influência moura que sempre pautou a música feita no Nordeste.
“Aburguesar” é uma letra inédita de Tom Zé. A canção estava perdida em uma antiga fita de rolo, provavelmente de 1972, e foi encontrada quando fizemos o “Vira Lata na Via Láctea”, álbum dele que eu produzi em 2014. Àquela altura, Tom Zé entendeu que os versos que tinha escrito estavam datados e optou por não usá-los. Mas o mundo deu voltas estranhas e nos trouxe para tempos tão ou mais nefastos do que aquele começo de anos 1970. E a carga amarga, cínica e política de “Aburguesar” volta a fazer completo sentido. Cantora tão teatral quanto Juliana, Letícia Novaes - a Letrux - veio dividir os vocais da canção. Essa é a única faixa do álbum que não tem produção musical de Elísio Freitas. Quem assina é o também carioca Vovô Bebê.
Outra canção política, “Frivião” também foi escrita em parceria com Rafael Barbosa. É um manifesto anti-Bolsonaro. Juliana compôs a melodia com arranjos de boca, rabiscou a letra e deu para o irmão terminar. O arranjo remete ao carnaval e à vontade de rua gerada pela pandemia.
Regravações
“Tareco e Mariola” é um hino no Nordeste, um forró clássico de Petrúcio Amorim consagrado na voz de Flávio José. Quando foi morar no Rio, Juliana percebeu que ninguém conhecia a canção. Começou a cantar nas apresentações do Pietá e viu que ela causava comoção geral. Uma curiosidade. Quando anunciaram a primeira edição do programa “The Voice Brasil”, por insistência do pai, Juliana se inscreveu cantando “Tareco e Mariola” e chegou até a passar algumas fases. Uma canção tão importante em sua história de intérprete não poderia faltar no álbum de estreia.
A outra regravação, “Bolero de Isabel”, foi escrita por Jessier Quirino e já conta com uma linda versão de Xangai. Quando adolescente, Juliana mergulhou na obra de Quirino a partir de uma montagem, na escola, de espetáculo teatral de autoria do poeta paraibano. Logo que se mudou para o Rio, costumava cantar “Bolero de Isabel” acompanhada do violonista Rodrigo Garcia. Chegaram a fazer uma gravação caseira da canção e enviaram ao pai de Juliana, absoluto fã da composição. Pois a gravaçãozinha rodou de whatsapp em whatsapp até chegar no próprio Jessier, que procurou Juliana e enviou uma mensagem poética agradecendo. Rodrigo Garcia toca viola caipira e violão barítono na nova versão da música.
Com texto de Macus Preto
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