Continuamos a contar as histórias de casarões e as três pequenas casas

Colunas

Lenda urbana

Continuar a mirar as estrelas e o mundo inteiro, para sempre voltarmos à nossa pequena cidade com suas histórias de casas e casarões

01 de agosto de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

 

Na cidade que habito, existia uma lenda de que uma única casa não chorava. Fiquei curioso e fui atrás investigar o motivo (ou os motivos) que intercediam nas sentimentalidades daquela casa. Antes, quero dizer que penso a cidade com um tabuleiro de xadrez. Com bairros, avenidas, ruas, vielas, tudo demarcado pelas linhas retas da mesa como também pelas linhas cognitivas do jogo. E, portanto, com sinuosas histórias. As cidades são como as suas gentes.

Reza a lenda, que logo após serem fincados os primeiros alicerces daquela cidade − dois casarões e três pequenas casas da vila −, um dos casarões sumiu fisicamente do mapa. Assim: de repente. Como se abrisse um buraco do nada e ali mesmo a edificação desaparecesse. Ficando o seu espaço preenchido apenas pela lembrança do que foi, enquanto obra da engenheira, e do que nunca deixou de ser enquanto representatividade para aquela pequena cidade. Em alusão ao xadrez: podemos dizer que o rei caiu.

A partir dessa queda, o choro que parecia algo até comum naquelas bandas, passou a ser mais escasso. Apenas nas três pequenas casas é que se ouvia algum balbucio. Nada muito alarmante, mas ainda assim: se ouvia. Enquanto no velho casarão, nada. Nenhum pequeno barulho. Nenhuma gotinha sequer.

Enquanto escrevo essa crônica, escuto uma bela canção (Birones y Servilletas) composta por Carlos Sandroni (Uruguai) e adaptada por seu conterrâneo, Leo Masliah, cantor e compositor do primeiro time da música popular do seu país e do mundo. Aqui no Brasil essa música ganhou o título de Guardanapos de papel e a voz de Milton Nascimento. E apenas para deixar o registro digo: a gravação do Milton ficou esplendorosa!

Passeando pela letra enquanto escuto a melodia, percebo que a surpresa também é um elemento formador das coisas. Não quero dizer que a vida é unicamente composta de surpresas e de revelações. Mas a verdade é que não podemos fechar os olhos quando estas aparecem. Perceber a chegada dos poetas na cidade lírica de Sandroni, Masliah e Nascimento, foi o motor para que eu ligasse uma coisa à outra. Nesse instante, a falta de choro no casarão da minha cidade abraçava a chegada dos poetas da cidade uruguaia. E se unia a surpresa que só os acontecimentos podem revelar.

Andar pelas ruas da minha cidade com os/as poetas, foi como ampliar e apurar o ouvido a outros sons para além dos balbucios e dos silêncios. Pisar na rua é parte fundamental para experienciar essa nova vivência. E foi o que fiz. Cada vez mais procuro estar próximo de outros sons. As fronteiras das cidades devem ser superadas como um fator de descobrir-se.   

A minha mãe, a minha cidade, não chorava aos meus olhos e aos das minhas irmãs para nos proteger. E protegeu muito bem. Parecia uma intransponível e gigante cortina de força a cobrir sua ninhada. Entretanto, antes de falecer, a minha mãe, com Alzeihmer, chorou. Mas ainda assim chorava escondido. Com a mesma finalidade: proteger a sua ninhada; o seu vilarejo.

Aquele conjunto de pequenas casas mais o casarão tocaram os dias dentro de uma certa normalidade. Certa, porque nem tudo caminha como a gente quer. As intempéries estão por aí, e a experiência com a vida é o que nos prepara para os enfrentamentos. Entretanto, o que vale dizer é que a vida fluía e continua a fluir. Pois continuamos a mirar as estrelas e o mundo inteiro, para depois voltarmos a nossa pequena cidade com seus dois casarões e suas três pequenas casas.