Leonardo Valente tem romance adaptado para o teatro: "É emocionante"

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Leonardo Valente: “Não gosto da ideia de temas da moda, acho que pode empobrecer toda uma geração"

Escritor carioca tem livro publicado em Portugal e traduzido na Argentina, e agora adaptado para teatro pela atriz Tânia Alves

23 de agosto de 2022

Cefas Carvalho

Nascido em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, em 1974, Leonardo Valente é escritor, jornalista e doutor em Ciência Política, além de professor de Relações Internacionais da UFRJ. Tem cinco livros publicados: “Charlotte Tábua Rasa”, de 2016, "Apoteose" (Mondrongo, 2018), "O beijo da Pombagira" (Mondrongo, 2019), que foi finalista do Prêmio Rio de Literatura, "Calote" (Mondrongo, 2020) e “Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos", que  vem fazendo sucesso e que está sendo transformando em peça teatral protagonizada por Tânia Alves. Em 2017, foi um dos vencedores do Prêmio José de Alencar de melhor romance, da União Brasileira de Escritores, com um original ainda inédito e é um dos organizadores da coletânea "Antifascistas" (Mondrongo, 2020), que reuniu alguns dos mais importantes nomes da literatura lusófona. Nesta entrevista, ele falou sobre sua obra, mercado editorial, projetos e muito mais.

Seu livro "Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos", lançado no Brasil em 2021, chegou às livrarias de Portugal e está sendo traduzido na Argentina. Fale sobre o trajeto da obra, da sua origem e escrita até esse caminho de estar ganhando o mundo.

A primeira versão desse romance foi um pequeno conto, publicado em 2017, onde a alternância de gênero não existia. Em 2019, surgiu a ideia de que poderia ser transformado em romance, e passei todo o ano trabalhando nele, especialmente durante minhas crises de ansiedade, que começaram no mesmo ano. A ideia de indefinir o gênero da personagem surgiu nessa época. Em 2020, veio a pandemia, e apesar de ter outro romance que seria lançado, “Calote”, e o lançamento da antologia “Antifascistas”, e muito trabalho na tentativa de adaptar o instituto que dirigia na UFRJ à nova realidade, aproveitei todo tempo vago que tinha para as revisões e reflexões sobre o que fiz. No final do ano, terminei a fase de revisões, meus originais passam, além das minhas revisões, por pelo menos um outro revisor antes de irem para um editor. Foi quando pedi à Pilar del Río e à Maria Valéria Rezende que lessem o texto. As opiniões delas foram definitivas para a tomada de decisão sobre a publicação em 2021, o que aconteceu entre maio e junho. Foi um trabalho meticuloso, levando em conta o fato de o livro ser publicado por uma editora independente e fora do eixo Rio-São Paulo, mas também a vontade de superar todos os entraves e fazê-lo chegar a um número expressivo de leitores. Deu certo. Em menos de um ano, já foram seis impressões e uma quantidade de exemplares superior a muitas publicações de editoras grandes. Ainda no lançamento, fui contatado pelo Consulado da Rússia, no Rio, interessado na tradução, trabalho que não vingou por causa da guerra, em menos de seis meses já tinha contrato assinado com uma editora de Portugal, e poucos meses depois com outra da Argentina, onde o livro já está traduzido e entra em pré-venda nas próximas semanas, com distribuição também no Chile e no Uruguai. Há outros contatos de publicação bem adiantados em outros dois países. Fico muito feliz em ver que um livro publicado por uma editora independente pode, sim, furar bolhas e romper barreiras antes consideradas intransponíveis, sinal que as coisas no mercado estão mudando.

O texto do livro também está sendo será aos palcos do Rio de Janeiro neste mês, com a atriz carioca Tania Alves, dando corpo e voz à misteriosa personagem-título.  Como foi o processo da obra virar texto teatral e qual sua expectativa com essa montagem?

Tania queria um texto para comemorar seus 50 anos de carreira, eu já havia sido sondado por atores para uma adaptação, uma vez que o texto tem uma forte pegada teatral. André da Costa Pinto, então, fez a mediação, a Tania amou o livro e eu a ideia de que ela interpretasse D., sob direção do André. Os dois trabalharam na adaptação do texto e eu me envolvi o mínimo possível, tirando apenas dúvidas que eles me mandavam. Minha expectativa é a de que será um monólogo fabuloso, mas uma obra de Tania e André e não minha. Mesmo assim, é muito emocionante ver uma história que começou dentro de mim ganhar outra linguagem artística, e uma dimensão física que a literatura não concede a não ser pela imaginação, o corpo de uma atriz, a concretude de um cenário e da luz, será uma experiência inesquecível. 

"Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos" tem um/a narrador/a de gênero fluido, proporcionando uma interessante reflexão sobre isso. Acredita que gênero e sexualidade são dos temas mais importantes para a literatura na atualidade?

Faço parte da turma, cada vez menos numerosa, que acha que todos os temas são importantes para a literatura. Não há dúvidas de que questões sociais, políticas e culturais atuais precisam virar histórias, devem ganhar espaço e marcarem de certa forma nossa época para futuras gerações. Mas isso não basta, a liberdade de criação deve ser total, e a hierarquia de temas no mercado, não devemos nos iludir, tem muito mais a premissa do potencial de vendas e de marketing do que da importância social da questão. Não gosto da ideia de temas da moda, acho que isso pode empobrecer toda uma geração, e exclui outras histórias que não passavam pela cabeça de ninguém e que podem marcar época. O escritor precisa ser um ator político de seu tempo, mas sem perder a liberdade, o sonho e a ousadia, produzimos arte antes de tudo.  

Anteriormente você já havia publicado "O beijo da Pombagira" (2019) e "Apoteose" (2018). Como foi o processo de escrita e edição destes dois livros e o que eles têm em comum com "Criogenia de D."?  

Na verdade, também publiquei “Calote” (2020) e meu primeiro romance publicado foi “Charlotte Tábua Rasa”, de 2016. “Apoteose” foi meu único livro de contos, ainda não sei se volto aos contos, e que chegou na fase final do Prêmio Sesc de Literatura em 2017. “O beijo da Pombagira” foi finalista do Prêmio Rio de Literatura e “Calote” venceu o Prêmio Julia Lopes, da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ). Em todos eles, há um trabalho de experimentação narrativa e de linguagem, isso foi colocado em várias críticas, mas “criogenia de D.” foi mais radical nesse campo. Tenho uma certa dificuldade de apontar elementos de continuidade e de ruptura nessas obras, olhar de dentro é sempre mais turvo, mas a segunda edição de “Calote” tem um posfácio do professor Edson Oliveira, da UFMG, em que ele coloca um ponto que defende ser central na obra, e que para Gustavo Felicíssimo, meu editor, e alguns leitores é um ponto central em todas as minhas obras: a ironia. Segundo eles, os elementos irônicos estão presentes como característica mais marcante dos meus textos. Neste caso, considero a opinião do leitor bem mais importante que a minha. 

Você é jornalista e professor de Relações Internacionais. De alguma maneira estas ocupações profissionais têm impacto na sua visão de mundo e na sua literatura?

Sem dúvida. Mas para quem escreve até o ato de respirar influencia. O escritor é antes de tudo um observador, e seu lugar no mundo é crucial para isso. O jornalismo me ensinou a lidar com a rotina pesada de textos, sem medo das páginas em branco, com as críticas e com os meios profissionais e sociais hostis, quem é jornalista entende bem isso. Já a academia contribuiu com a dimensão política e analítica. Tudo isso é importante, mas sempre que me sento para escrever ficção repito para mim: agora eu não sou jornalista, nem professor, nem coisa alguma, eu sou livre, só isso.

Como avalia o mercado literário brasileiro atualmente? Existe espaço para novos escritores?

Em minha opinião a literatura brasileira, paradoxalmente, vive um dos melhores momentos de sua História, nunca se publicou tanto, com tamanha diversidade. Parte relevante dessa literatura contemporânea é de uma qualidade extrema, e tenho certeza de que ficará para as futuras gerações. O mercado independente possibilitou a emergência de escritoras e escritores que em outras épocas não teriam chances, e que felizmente hoje nos enriquecem com suas obras. Sim, há espaço, há editoras e meios de se chegar aos leitores, mesmo que de forma modesta. Reajo com boca torta para as lamúrias dos que afirmam que se publica demais no Brasil, que tem escritor demais, isso para mim é papo de quem ainda vive em um país que precisa ser sectário, onde escrever é para poucos, não vejo muita diferença desse comentário para aqueles que reclamavam que os aeroportos passaram a viver lotados anos atrás.  

Afinal de contas, quem lê literatura no país? Acredita que é necessária a formação urgente de novos leitores?

Ou este país passa por uma revolução na educação, em seu sentido mais amplo, ou sua existência, e não recorro aqui a analogia alguma, está ameaçada. Nossa sorte ainda está na escala, somos um país de 220 milhões de habitantes, onde qualquer 5% disso ou daquilo nos coloca no patamar de um país europeu em números, gráficos e estatísticas. Se temos 5% de leitores, temos 11 milhões de pessoas. É para comemorar? Claro que não, é uma tragédia em termos totais, nos transforma em um lugar miserável, mas são 11 milhões de pessoas. Lê hoje quem tem condições de comprar um livro e quer ler um livro. Isso já exclui parte de nossa classe média, que tem condições, mas não quer. Outros só querem ler autoajuda e livros de padres e pastores. Outros, inclusive editores, só acreditam em traduções, no que vem de fora, pensamento colonial no meio é algo muito forte. Mesmo assim, temos leitores para literatura contemporânea, sim, há potencial a ser explorado. Ah, mas tem livro que vende cem exemplares. Sim, mas tem centenas de livros na praça a cada semestre vendendo cem exemplares. Tivemos um best-seller recente da literatura contemporânea com 300 mil exemplares vendidos. Outros títulos, ainda que não muitos, chegam a 20, 30 mil. Acredito que a formação de cidadãos é urgente nesse país, e se ela for bem-feita, a partir de bases sólidas, esses cidadãos viram novos leitores de viramos uma potência no meio.

Como foi sua produção literária e seu consumo de livros durante o período mais agudo da pandemia, na época do confinamento e pré-vacina?

Li muito, escrevi muito, inclusive criogenia. Não vi séries como muitos viram, tive muito medo e muita ansiedade, ganhei alguns quilos, fiquei sem saber como agir diante de tantas responsabilidades, odiei o atual governo com força visceral. Leitura e escrita foram as únicas coisas que se mantiveram no ritmo de anos anteriores. Não há como negar, contudo, que em alguns momentos a concentração simplesmente não existiu, mas também cheguei à conclusão de que não devo lutar para ser produtivo no sentido capitalista do termo, na literatura devo trabalhar para produzir o que sinto que vale.  

Acredita que um escritor deve abordar a realidade, temas atuais ou de alguma maneira enfocar justiça social? Como vê a polêmica sobre o papel social de um escritor?

Creio que parte dessa resposta foi respondida anteriormente, mas acho importante ressaltar que me sinto muito confortável nesse tema, tanto porque já publiquei romances que tocam em questões sociais de extrema relevância, como a questão econômica mais ampla, em Calote, passando por questões de gênero, a textos que não esbarram diretamente em temas desse tipo, que se sentiram livres para nadarem na contramão de tendências. Deve-se ter espaço para tudo. Para mim não, há polêmica em uma discussão sobre o papel social de um escritor, simplesmente porque não consigo vislumbrar qualquer função sem um papel social.

Quais os seus próximos projetos?

Vem romance novo por aí em algum momento. Um ou talvez dois ao mesmo tempo, ambos estão prontos, a depender de alguns fatores. Mas criogenia, apesar de já percorrer sua estrada sozinho, ainda precisa de alguma dedicação de minha parte, especialmente fora do país, e isso no momento é prioridade.