LinLidevania Martins é graduada em Direito e  mestra em Cultura e Sociedade

Reportagens

Lindevania Martins: “O Norte-Nordeste sempre foi segregado dentro do colonialismo cultural"

Pra a autora, mesmo com a internet, essa relação de troca entre autores do sul-sudeste está muito aquém do que poderia-se pretender.

17 de março de 2023

Cefas Carvalho

Maranhense nascida em Pinheiro hoje morando na capital do Estado, São Luís, Lindevania Martins é graduada em Direito e  mestra em Cultura e Sociedade pela UFMA, sendo atualmente mestranda em Direito Constitucional pela UFF. Delegada de polícia entre 1998 e 2001, é defensora pública de Defesa da Mulher e População LGBT. Atua como escritora,  palestrante e pesquisadora em Gênero, Tecnologia, Direito e Literatura. Integra o Grupo de Pesquisa em Crítica Jurídica Contemporânea (UFF). Participa do coletivo literário feminista Mulherio das Letras. Foi premiada em diversos concursos literários como Concurso Literário e Artístico Cidade de São Luís, Concurso Nacional de Contos da OAB Nacional, Prêmio Maria Firmina de e venceu o 6o. Prêmio CEPE de Literatura, categoria contos (2021). Possui contos e poemas publicados em diversas antologias, revistas impressas e sítios eletrônicos, entre os quais:  Cadernos Negros n. 42, Revista Gueto, Revista Pixé, Ruído Manifesto, Laudelinas, Café Espacial, Jornal O Relevo, e Acrobata, entre outros. Publicou os livros “Anônimos” (2003), “Zona de Desconforto” (2018), “Longe de Mim” (2019), “Fora dos Trilhos” (2019), “A Moça da Limpeza” (2021) e “Teresa Decide Falar (2022). Nessa entrevista ela falou sobre sua obra, condição da mulher escritora, mercado editorial e muito mais. Confira:

Como observa atualmente a literatura produzida por mulheres e como vê o espaço que elas têm atualmente no mercado editorial brasileiro?

Quando olho para trás, de onde viemos como escritoras, percebo o quanto progredimos. Claro que ainda temos muito para conquistar e que ainda não chegamos à igualdade que pretendemos, mas é preciso reconhecer avanços.  Da posição de  invisibilidade e a apagamento para uma posição desafiadora dos cânones e com uma produção que não pode mais ser ignorada: temos muitas mulheres publicando, ganhando prêmios,  conduzindo editoras, na função de curadoras, etc. Acho importante mencionar que ganhamos sobretudo na compreensão sobre os diversos modos e níveis de subalternidade a que fomos submetidas. Ganhamos na consciência de que é preciso que cada mulher consiga avançar levando outras consigo, bem como ampliando seu olhar para perspectivas e modos de viver que não sejam apenas os seus. Creio que as mulheres, de modo geral, têm mudado  a cara do mundo e isso se reflete na literatura e no mercado editorial.

 

Você é participante e entusiasta do movimento coletivo Mulherio das Letras, que reúne mulheres escritoras de maneira on line e também presencialmente. Qual a importância deste movimento e quais as próximas ações dele?

O coletivo Mulherio das Letras é um local de fortalecimento, especialmente para mulheres escritoras ou ligadas à cadeia do livro, mas não apenas para nós que nos movemos nesse meio. Cada vez que uma mulher se coloca em  posição de visibilidade e desafia tradições misóginas, ela incentiva outras a pensarem que podem fazer o mesmo.  Por isso, esse é um movimento que amplia as potências das mulheres no mundo e expande seus limites. Como uma das próximas ações, registro que teremos um encontro presencial neste ano de 2023 no Rio de Janeiro, o que sempre é um momento muito esperado porque é quando podemos olhar nos olhos e nos reconhecer umas às outras.

 

 Já atuou como delegada de polícia e hoje está na Defensoria Pública do Estado. Como esta atuação influencia sua literatura e sua maneira de ver o mundo e a arte?

Uma das preocupações que norteia meu trabalho literário é a questão das identidades. Quem somos no mundo? É possível fugir à repetição e à tradição e nos construirmos de um modo novo? Atuando como defensora pública do Núcleo de Defesa da Mulher e População LGBTQIA+, também atuo com essas mesmas questões dentro do direito. E antes dessas questões me interessarem pelo viés da literatura ou do direito, elas já me interessavam como mulher e como ser humano. Mas o trabalho no direito, que me leva a travar contato com tantas narrativas diferentes, com frequência narrativas contrárias umas às outras, tanto como Delegada de Polícia e como Defensora Pública, intensificaram essas questões, especialmente as demandas relativas a identidades ainda vulneráveis como a das mulheres e população LGBTQIA+, o que se reflete em meu trabalho literário. E as indagações são inevitáveis. O direito, muitas vezes tido como conservador, é sempre força de conservação? Ou se podem construir utopias e forças de mudança a partir dele? E  a Literatura e Arte, tidas como progressistas, funcionam sempre assim? Nossa imaginação realmente é livre? Quando um autor escreve ou quando um artista cria, é possível elaborar novas sensibilidades estéticas que reposicionem as identidades? Ou atuam reproduzindo o que já existe? Como vê, ainda tenho mais perguntas que respostas.

 

Você publicou dois livros de contos "Anônimos: invenções de amor, morte e quase morte" e "Zona de Desconforto". Como foi o processo de escrita e publicação deles e o que eles têm em comum?

Todo escritor e escritora possui suas obsessões, esses temas recorrentes que aparecem em suas histórias. Meu processo de escrita é caótico. Não possuo método. A publicação de ambos os livros mencionados, que são respectivamente meu primeiro e meu segundo livro, se deu através de concurso para originais/inéditos. "Anônimos: invenções de amor, morte e quase morte" venceu o Concurso Literário Cidade de São Luís, categoria contos, pelo que foi todo custeado pela Prefeitura de São Luís do Maranhão. E "Zona de Desconforto" foi selecionado em um concurso nacional lançado pela Editora Benfazeja, que também custeou toda a publicação do livro. Ser selecionada em concursos e publicar para mim foi algo muito importante porque eu era uma garota que passava muito tempo escrevendo e guardava todas essas histórias. Eu escrevia por escrever ou para aliviar  algumas tensões internas, sem contar para outros o que eu fazia quando eu estava sumida.  Mas era como ter uma vida secreta e uma atividade inútil que não se conectava com nada. Então, ser publicada e ser escolhida nessas seleções adicionou um outro sentido a essa atividade cuja necessidade, dentro de mim, eu não compreendo ainda por inteiro.

 

Em 2019 lançou "Longe de Mim", que tem como protagonista Josi, uma menina de 10 anos cuja vida está prestes a mudar. Fruto de uma gravidez na adolescência. Como foi abordar este tema e qual a importância em se debater essas temáticas?

Meu trabalho conta com muitas narradoras meninas, como Josi. Penso que isso talvez se deva ao fato de que eu era uma menina muito curiosa e de que certas experiências dessa fase tenham me marcado bastante. Vi várias adolescentes da minha idade grávidas e angustiadas, na pequena cidade onde vivia, no interior do Maranhão. Suas vidas sofreram um corte abrupto e não raro foram abandonadas pelo pai da criança e pela própria família. "Longe de Mim"  fala sobre abuso e violência a partir do olhar de uma menina que é fruto de uma gravidez na adolescência e que é jogada numa espiral de abandono. Chamar atenção para estas questões a partir da literatura implica em nos fazer refletir sobre as diversas implicações ligadas  à temática: destacar a necessidade de se evitar a gravidez na adolescência; mas caso ocorra, escolher formas mais sábias de lidar com o fato que não revitimizem a mãe adolescente; reconhecer que as meninas de classe economicamente mais vulneráveis são as que mais sofrem; pensar que tipo de futuro está reservado a essa prole; exigir atuação do estado, mas também sensibilidade da comunidade como um todo, etc.

Também em 2019 você lançou "Fora dos Trilhos", livro de poemas. Como foi adentrar o universo da poesia?

Amo a poesia. Mas sou uma poeta errática. Creio que escrevo poesia quando sinto necessidade de auto expressão, mas não encontro as palavras. Então, é uma ignorância que me move. Preciso inventar modos de dizer e com esse objetivo, acabo encontrando algo a que tenho chamado de poesia. Despejo tudo isso no papel e depois volto para tentar compreender e melhorar o que fiz. De uma lista de seis livros, "Fora dos Trilhos" é meu único livro de poemas. Mas, em breve, teremos mais um.

Acredita que existe intercâmbio literário em um país continental como o Brasil? Quem mora no eixo Rio-SP lê o que se escreve no Norte-Nordeste, por exemplo? 

O Norte-Nordeste  sempre foi muito segregado.  É fato que existe um colonialismo cultural dentro do nosso país a partir do qual o eixo sul/sudeste é pensando como superior ao norte/nordeste.  Creio que atualmente existe um intercâmbio literário maior do que existia há algum tempo atrás por conta de alguns fatores. Um deles é a internet que permitiu que pudéssemos circular pelo mundo de modo independente de nossa localização geográfica, circulação essa que foi intensificada durante  período crítico da pandemia. Outro deles é a crítica feminista que perguntou pelo lugar da mulher na literatura, mas que também abriu espaço para que se desse visibilidade a outras perguntas incômodas. Mas essa relação de troca está muito aquém do que poderíamos pretender. E não é só o eixo Rio-São Paulo que lê pouco o norte ou nordeste. Lemos pouco entre nós. Temos poucos projetos em conjunto. As grandes mídias ao divulgar maciçamente o que é produzido no sul e no sudeste cria um público dentro do norte e do nordeste que se interessa pouco pelo que produzimos aqui.

 

 

 

Quais os seus próximos projetos literários? O que planeja literariamente para 2023?

 

 

Em 2021 lancei um livro de contos chamado “A Moça da Limpeza” que foi selecionado e bancado pelo Estado do Maranhão através da Lei Aldir Blanc e em 2022 lancei “Teresa Decide Falar”, vencedor do 6o. Prêmio CEPE Nacional de Literatura e publicado pela Cepe Editora. Assim, 2023 é ano para me dedicar a finalizar um mestrado em direito constitucional. Não planejo lançar obras neste ano.  Contudo, atualmente possuo dois projetos literários diferentes em andamento. Um deles é meu primeiro romance, chamado “Os Poemas Mortais do Reino de Lá”. E o outro é meu segundo livro de poemas. São projetos especiais aos quais quero me dedicar com paciência. Por isso e por conta do mestrado em direito, planejo ir bem devagar e lançá-los só em 2024.