Nascido no Brasil de mãe paraibana e pai guineense, Mané parte em busca de sua outra ancestralidade

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Antes do início mostra busca de Ernesto Mané, físico e diplomata brasileiro, por sua ancestralidade

Em livro de estreia, Mané entrelaça reflexões sobre ancestralidade, abandono e racismo, gravitando entre ciência e espiritualidade

07 de agosto de 2025

Em 2010, Ernesto Mané — doutor em física com especialização nos mais importantes centros de pesquisa do mundo — parte rumo à Guiné-Bissau para realizar uma travessia geográfica e afetiva, visitando seus avós e parentes.

Nascido no Brasil de mãe paraibana e pai guineense, Mané tinha uma inquietação profunda: sair à procura de sua ancestralidade e conhecer o outro lado da kalunga, isto é, o que há na outra ponta da travessia atlântica que tantos africanos fizeram ao longo dos séculos até chegar aqui.

Seu pai, da geração responsável pela independência da Guiné-Bissau, emigra para o Brasil nos anos 1970 graças a uma bolsa de estudos do Itamaraty, em busca de uma formação acadêmica internacional de alto nível. Em São Paulo, acaba sendo repelido pelo racismo nas salas de aula e corredores da universidade, e abandona o jovem Ernesto e a família. Em Cabo Verde, constitui nova família, e novamente a abandona. Seria um “sacana”, um “grande filho da puta”, como dizem alguns, ou apenas alguém que tentava salvar a própria pele em meio à barbárie das guerras coloniais portuguesas? O que têm a dizer os amigos e parentes que ficaram na Guiné-Bissau sobre este homem que parece ter abandonado a todos, mas que é lembrado e mencionado no tempo presente, como se sempre estivesse ali?

Conhecer a realidade da Guiné e da família que vive ali traz desalento e dor, frustra expectativas, amplia os questionamentos e o faz revisitar memórias de infância. A paternidade e o divórcio recentes o fazem olhar de outra maneira para o pai e para os enredos familiares. Tudo vai sendo registrado no calor da hora no diário que resultaria neste livro original e comovente, mescla de relato de viagem e ensaio autobiográfico.

Tendo sofrido racismo desde criança no Brasil, ele se choca ao ser chamado de “branco” nas ruas de Bissau, pelo modo de se vestir e se comportar. Aprende a comer com as mãos, da mesma tigela dos parentes reunidos à mesa. Conhece a bolanha, a plantação de arroz junto à qual vivem seus avós em condições extremamente precárias. Um dia ele se vê no transporte público carregando pelos pés um presente que ganhou: uma galinha viva, cena comum nas ruas de Bissau. As contradições e possibilidades da Guiné chamam a atenção do jovem cientista. Parece-lhe evidente o potencial cultural e político do crioulo, idioma que é falado por toda a população, mas que seu pai não lhe ensinou e não é sequer adotado como uma das línguas oficiais do país.

Depois da viagem, Mané — sobrenome de origem balanta, uma das etnias que compõem a população da Guiné-Bissau — será admitido no corpo diplomático brasileiro por meio de políticas de ação afirmativa. Em seu diário ele toma nota do que vê e ouve como quem secretaria uma reunião familiar e muitas vezes atua em “missão diplomática” junto a irmãs, cunhados e amigos da família. Constata que ninguém ali toca tambores nem veste roupas tradicionais africanas, mas apresenta a capoeira angola a meninos que brincam na rua. Observador comprometido com o que vê, volta sua curiosidade intelectual para o Brasil.

Entre as muitas resoluções que toma a partir da viagem está o pedido de um passaporte da Guiné-Bissau para ter dupla cidadania. Se a história e a política, conforme atestam as páginas de Antes do início, contribuíram para acentuar a distância entre África e Brasil, Ernesto Mané nos mostra de forma notável que a literatura é uma linguagem privilegiada para nos trazer notícias do outro lado da kalunga.

Antes do início
Divulgação/Tinta-da-China Brasil

Ficha técnica
Título: Antes do início
Autor: Ernesto Mané
Edição: Gustavo Pacheco e Tinta-da-China Brasil
Páginas: 256 pp
ISBN: 978-65-84835-14-6
Preço: R$ 89,90