Ivan Maciel de Andrade lançou recentemente o livro "Fios da Meada". Foto: Lívio Oliveia

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Lívio Oliveira desfia o novelo de histórias do homem, intelectual e jurista Ivan Maciel de Andrade

Nesta entrevista, o escritor e professor de Direito resgata capítulos de sua vida e atuação nos acontecimentos políticos e culturais do RN

26 de agosto de 2021

Por Lívio Oliveira

A presente entrevista busca, talvez ainda de forma insuficiente, porém com honestidade de propósito e esforço em busca do desiderato, traçar um mapa humano e intelectual de um personagem especialíssimo e de um jurista e escritor culto e pleno de erudição: Ivan Maciel de Andrade. O entrevistador possui facilidades e dificuldades muito peculiares na tarefa a que ora se atreve diante do entrevistado. A uma, porque é admirador profundo e perene daquele que esteve entrevistando e se considera mesmo um discípulo direto (com muito menor quilate, por óbvio) do mestre; condição que vem de longe, das aulas de Introdução ao Direito nos bancos acadêmicos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e das leituras dos seus textos na imprensa potiguar. A duas, por se considerar ainda – mesmo que no status honroso de confrade do entrevistado, na Academia Norte-rio-grandense de Letras – um interlocutor muito reverente da personalidade e da obra de Ivan Maciel de Andrade, este que naquele sodalício da rua Mipibu, em Natal, ocupa a Cadeira nº 17, sendo o sucessor imediato do saudoso Aluízio Alves.

Talvez fatores como os descritos acima impeçam uma cômoda e tranquila atitude nessa situação inusitada de entrevistador. Mesmo assim, não se perdeu a oportunidade rara e extremamente necessária, essencial. Hoje tem-se aqui um pequeno documento, que traz mera síntese possível nesse formato, acerca de uma mente privilegiada e acima de qualquer média. Ivan Maciel de Andrade, os leitores percebam, não é somente uma joia incrustada na Academia Norte-rio-grandense de Letras. Possui uma representatividade e uma estatura que o fazem ser um dos mais louvados escritores da atualidade no Rio Grande do Norte, tanto pelo leitor comum, como pelos que compõem a intelligentsia potiguar, por deter as capacidades intelectivas e a coragem e a altivez moral de dizer o que deve ser dito.

Além de tudo o que foi destacado, vale um destaque para o aspecto de que o escritor entrevistado possui algo inatingível e insuperável nos textos que hoje publica na imprensa potiguar e que tem reunido em importantes, incontornáveis, imperdíveis livros (o mais recente, publicado pela Caravela Selo Cultural, intitula-se “Fios da Meada”): o estilo, a estética e o sabor do texto, que fazem com que o leitor se torne fiel e que nutra sempre o anseio pelo próximo que virá, em contínuos embevecimento, deleite mesmo, diante das palavras que lhes chegam aos olhos e à mente reflexiva, porque assim os provoca e os convoca Ivan Maciel de Andrade.
Confiram, agora, o que é o essencial: o primor das respostas do entrevistado:
 
A entrevista
 
[L.O.]  Professor Ivan Maciel, sabe-se que a sua relação com as letras – sejam elas no campo jurídico, sejam elas no campo artístico-literário – têm muito a ver com a sua admiração pela figura paterna. O senhor poderia nos descrever a figura do seu pai e os vínculos comuns que se constituíram em torno das ideias, do intelecto, da produção a partir da palavra escrita (no campo jurídico e literário)? Claro que, nesse caminho, também se indica falar acerca do ambiente da casa, da infância e da adolescência, com a inclusão da figura materna e demais personagens familiares nesse importante contexto das suas origens.
 

[I.M.A.] Meu pai (Dario Jordão de Andrade) era, sobretudo, um homem humilde. Por índole. Nunca se promoveu, nunca fez marketing de si mesmo, em meio a tantas “mediocridades triunfantes” e ciosas de sua projeção social. Foi professor do curso secundário; depois de aprovado em concurso, se tornou Promotor de Justiça e, por fim, também mediante concurso, chegou à carreira da Magistratura (que encerrou no cargo de Juiz de Direito da Comarca de Natal). Gostava de ler. E lia muito. Interessava-se não apenas pelas disciplinas jurídicas essenciais ao exercício de sua função judicante, mas, com prazer ainda maior, se dedicava à Filosofia e à Sociologia do Direito. E tinha paixão pela literatura, nacional e estrangeira. Apesar disso nunca aceitou o rótulo de intelectual. Assinava e lia, diariamente, jornais do Rio e de São Paulo. Gostava de ler em francês, embora lesse também razoavelmente em inglês e italiano. E estudou durante muito tempo alemão, sozinho, fazendo caprichosos exercícios num caderno pautado, com uma gramática e um dicionário de lado. Na verdade, eu fiz o Curso de Direito muito mais com ele do que com os professores que integravam o corpo docente da antiga Faculdade de Direito.

Por outro lado, aprendi com minha mãe (Jenny) a solidariedade ao próximo: ela não podia ver ninguém sofrer privações que não prestasse ajuda, auxílio, apoio, sem que a mão esquerda percebesse o que a direita fazia, como recomenda o Evangelho. Minha irmã Sônia formou-se na Faculdade de Direito de Maceió e não desfrutou do privilégio do acompanhamento de meu pai em seus estudos. Devo dizer que sempre achei Sônia a pessoa mais inteligente com quem convivi em minha vida. Quanto à minha infância, foi marcada pela presença de meus avós maternos: Olímpio e Ellen. Passava as férias na casa deles em Macaíba. Meu avô Olímpio era carismático, de atitudes ponderadas, firmes, éticas. Sua influência – como exemplo de honestidade e caráter – se estendia por toda a família, incluindo filhos e netos. Já quis muito escrever uma obra de ficção inspirada em meu avô Olímpio. Iniciei o projeto e nunca o levei adiante. E, sem imodéstia, sinto que poderia ter sido (dentro de meus propósitos) bem-sucedido. Lamento não ter perseverado. O meu tio materno, José Maciel, foi um grande, inesquecível, fundamental amigo durante as mais diversas fases de minha vida. Mas não posso esquecer, nessas relembranças, a minha avó materna, Sofia (meu avô paterno morreu muito moço), filha de italianos, lutadora, expansiva, uma heroína, pela capacidade de trabalho e abnegação, com quem convivi quase diariamente em minha adolescência. Manteve a família (os cinco filhos) com modestas atividades comerciais. Dessa linha paterna, vieram dois primos estimadíssimos: Ticiano Duarte, que já faleceu, e Valério Mesquita, ambos jornalistas e escritores.
   
[L.O.]  Com a maturidade, a opção pelo Direito como escolha de ordem profissional foi algo natural ou se impôs como realidade pragmática? Em que dimensão o pensamento filosófico tocou nessa escolha, como análise das questões da vida e como disciplina associada ao conhecimento jurídico (em face da sua clara paixão pelo pensamento filosófico)?
 
[I.M.A.] A opção pelo Direito foi vocacional. Estimulada, naturalmente, por meu pai. Como sempre gostei de ler, convenci-me de que no campo jurídico teria as condições ideais para realizar essa paixão/compulsão. Ingressei na antiga Faculdade de Direito da Ribeira com 17 anos. Logo depois de concluída a graduação, fiz concurso para o Ministério Público. O interstício – o tempo entre a graduação e o concurso – para ingresso no Ministério Público foi dispensado pelo Governador do Estado (à época, Dinarte Mariz), em homenagem à primeira turma que se formava em nossa Faculdade. Pouco depois de ingressar no Ministério Público, fiz concurso e tornei-me professor do Curso de Direito da UFRN. Ensinei durante décadas a disciplina Introdução ao Estudo do Direito e, eventualmente, Filosofia do Direito.

Daí é que surgiu, se ampliou e se intensificou o meu interesse pelos aspectos filosóficos e sociológicos do fenômeno jurídico. Durante certo tempo sonhei em fazer uma pós-graduação no exterior. De preferência, na Alemanha. Tentei, mas não tive apoio nenhum para esse projeto. Reconheço que naqueles tempos esse projeto era de difícil realização. Ainda mais porque meu pai era um modesto Juiz de Direito, sem condições de assumir custos que excedessem as despesas domésticas. De qualquer forma, acredito que se morasse em São Paulo talvez as coisas fossem diferentes. Diante dessa impossibilidade, fiquei – sem qualquer sentimento de frustração – absorvido pelas atividades funcionais e docentes.

 
 
[L.O.]  Nessa trajetória profissional, também na visão acerca da vida, quais as suas influências estruturais decorrentes das leituras e das vivências diversas, no campo humano e humanístico, na trajetória profissional e de vida? Também numa síntese descabida, mas possível: quais os seus autores e livros de formação? E quais os que continuam sendo relidos?
 
    [I.M.A.] Sempre me dediquei a todos os ramos do Direito. Mas o Direito Civil me atraiu muito, de início, devido a dois autores: Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes. Poucos ficcionistas e ensaístas brasileiros consagrados conseguiram escrever com a qualidade estilística de Caio Mário. Eu lia suas “Instituições” não só para aprender como pelo prazer da leitura. Orlando Gomes vinha em segundo lugar. Mas eu o lia também com enorme satisfação. Havia um criminalista, hoje esquecido, que criava surpreendentes imagens literárias – que eram repetidas por magistrados e advogados – tratando de delitos e de penas: Nelson Hungria. Era uma leitura erudita, mas sobretudo agradável: aprendia-se Direito Penal através de uma linguagem que somente podia ser encontrada em boas obras literárias. Contudo, eu tinha sempre à mão o monumental “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda. Lia-o de forma concentrada, paciente, mas com inesgotável admiração. Em matéria de Introdução ao Estudo do Direito, formei uma vasta biblioteca de autores nacionais e estrangeiros. Entre os brasileiros, dois nomes: A. L. Machado Neto e Tércio Sampaio Ferraz.

Devo observar que, durante um longo tempo de minha vida, fui principalmente um estudioso da teoria jurídica – no campo da própria Dogmática e nas esferas sociológica e filosófica. Quanto à minha formação literária, para ela contribuíram sobretudo dois escritores: Machado de Assis e Eça de Queirós. Deveria citar também Marcel Proust. E Fernando Pessoa. E Tolstói. E Dostoiévski. E Tchekhov. Lia sem método. Escritores antigos e recentes. Ficção, poesia, ensaios literários, obras filosóficas. Li e reli “A comédia humana”, de Balzac, bem como James Joyce, Virginia Woolf, Kafka, Thomas Hardy, Flaubert, Faulkner, Albert Camus, Thomas Mann, Sartre e muitos outros escritores estrangeiros. Houve uma época em que me apaixonei pela ficção científica, mas, depois, passei a me interessar pelos romances policiais (um gênero pelo qual ainda hoje mantenho um grande interesse). Não posso esquecer, entretanto, os escritores brasileiros – Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Continuo relendo, frequentemente, Machado de Assis.   
 
 

[L.O.]   O senhor teve uma trajetória profissional extremamente rica, tendo exercido diversos cargos importantes no contexto jurídico e político do Rio Grande do Norte. Que experiências considerou essenciais à construção da sua biografia? Quais as personalidades que mais lhe trouxeram fortes e indeléveis impressões? Quais os momentos culminantes e os mais delicados no contexto histórico em que esteve envolvido nessas décadas?
 

[I.M.A.] Destaco, desde logo, Geraldo Melo. Participei com ele do CED (Conselho Estadual de Desenvolvimento) do governo de Aluízio Alves. Lá, no CED, é que foram elaborados os principais projetos que, adotados por Aluízio, mudaram radicalmente a face administrativa do nosso Estado, criando uma infraestrutura de órgãos e de serviços até então inexistentes.

Todos que conhecem Geraldo Melo sabem que ele é talentosíssimo. Excelente orador, jornalista, escritor (ficcionista), grande conhecedor da economia estadual. Fez uma inovadora, eficiente e austera administração no Governo do Estado (durante seu mandato fui Consultor-Geral) e teve brilhante atuação no Senado Federal, com ideias e iniciativas que beneficiaram o Rio Grande do Norte e o próprio país. Saí do CED para implantar, a convite de Aluízio Alves, um novo órgão da Administração estadual: o Departamento Jurídico (de que fui Diretor-Geral), que aglutinava todos os Procuradores estaduais e que foi transformado depois na Procuradoria-Geral do Estado. Ainda no governo de Aluízio Alves, fui Procurador-Geral de Justiça (que corresponde à chefia do Ministério Público). Aluízio foi um dos maiores tribunos políticos deste país, com a mesma estatura de um Carlos Lacerda. Sacrificou sua vocação de jornalista, em que adquiriu projeção nacional, pela política. Carismático, inteligente, com enorme capacidade de liderança, tinha uma personalidade marcante que, para o povão, assumiu proporções messiânicas. Multidões o seguiam fanaticamente, ouvindo-o e aplaudindo-o, num fenômeno de mobilização popular que nunca tinha ocorrido e jamais voltou a ocorrer em nosso Estado. Fez um governo que transformou e modernizou a Administração Pública, proporcionando o funcionamento de novos órgãos e segmentos administrativos que ampliaram substancialmente a prestação de serviços à coletividade.

Fiz parte também do governo (no cargo de Consultor-Geral) do Monsenhor Walfredo Gurgel – um governante responsável, criterioso, prudente, preocupado em que suas realizações (que foram muitas e relevantes) estivessem sempre dentro da capacidade de investimento e de endividamento do Estado. O Monsenhor Walfredo era pessoalmente agradabilíssimo, pela educação, cordialidade e simplicidade espontâneas (tipicamente sertanejas), pelo elevado nível intelectual e pelo informalismo com que tratava os seus auxiliares e, de resto, todas as pessoas que o procuravam na condição de Governador do Estado. Pertenci ainda ao governo de Garibaldi Alves, nos dois mandatos que lhe foram concedidos (na condição de Consultor-Geral). Garibaldi fez um governo marcado pelo espírito empreendedor, deixando um legado fabuloso de obras destinadas a dinamizar a economia estadual. Quanto à pessoa de Garibaldi, o mínimo que se pode dizer é que ele se comportava mais como amigo do que como autoridade em suas relações com o funcionalismo, dos de maior aos de menor hierarquia, e com o público a que atendia em suas frequentes e numerosas audiências. Garibaldi, pela competência e experiência, está credenciado a cumprir da melhor forma possível qualquer mandato popular que lhe seja conferido. Fora da área administrativa, destaco três figuras, que conheci de perto: Raimundo Nonato Fernandes, Múcio Vilar Ribeiro Dantas e Américo de Oliveira Costa. Os dois primeiros, pelos excepcionais conhecimentos jurídicos e, o último, por seus méritos de ensaísta literário, que transcendiam em muito os limites da província.
 
[L.O.]    Confesso que tenho uma curiosidade sobre o que lhe dá mais prazer na atualidade como leitor. Quais os temas eleitos e linhas de leitura? Obviamente, quais escritores e articulistas lhe trazem o prazer do texto (vide Roland Barthes)?
 
[I.M.A.] Continuo a ler e reler tudo o que me desperta interesse (de textos jornalísticos a estudos filosóficos). Mas uma leitura que considero especialmente prazerosa, pelo texto, é a de Jorge Luis Borges. A leitura desse escritor argentino nunca termina. Há sempre o que descobrir nele através de releituras. Compreendo que haja críticos e leitores que se concentram obsessivamente na obra de Borges, com exclusão de qualquer outra, para estudá-la e compreendê-la melhor, na plenitude de seus múltiplos, enigmáticos e desconcertantes significados.
 
[L.O.]  Uma pergunta que parece ser essencial quanto ao entorno da nossa existência como país democrático (e sou sabedor das suas preocupações quanto a esse assunto): como o senhor vê o futuro do país e dos valores da Democracia diante da realidade da pandemia associada a experimentações políticas (às quais temos assistido perplexos) de natureza, digamos, extravagante?


 
I.M.A. Tenho receio do que haverá em nosso país após as próximas eleições presidenciais, se o candidato que pretende permanecer no poder for derrotado e tiver de transmitir o cargo ao seu sucessor. Vai acontecer a mesma sublevação que ocorreu nos Estados Unidos? Lá, o princípio de insurreição foi contido pelo aparato de segurança, que se manteve fiel à democracia. E aqui? Como vai ser?  


 
[L.O.]   A sua obra literária tem sido construída na conexão com a escrita e as publicações semanais na imprensa do Rio Grande do Norte, destacadamente através dos textos que há anos escreve na Tribuna do Norte. Como conseguiu, com resultados tão satisfatórios (crescentemente reconhecidos por crítica e por leitores), associar o efêmero da realidade crua e do moto-contínuo dos dias à permanência da ideia e do estilo, firmando a palavra nos arames estendidos do tempo? Quais os frutos e os percalços que reconhece ter obtido e encontrado durante a edificação da sua obra literária até aqui? E os seus projetos literários, ainda não realizados e/ou publicados, que merecerão a sua atenção (e certamente o prazer dos leitores) num futuro próximo?
 
[I.M.A.] Não escrevi propriamente livros. Reuni artigos publicados na imprensa.  Minhas leituras de obras literárias sempre foram feitas em horas sequestradas de minha rotina de Consultor-Geral do Estado (cargo em comissão que exerci durante 16 anos), de Procurador de Justiça do Ministério Público estadual e professor da UFRN. Quando me aposentei no Ministério Público, passei a advogar.

Participei de grandes escritórios de advocacia em Natal. Devo reconhecer, violentando minha modéstia, que obtive extraordinários êxitos profissionais. O tempo para me dedicar à literatura sempre foi escasso. Utilizava-o, talvez por comodismo, para ler, sem qualquer intenção ou veleidade de exercer uma atividade literária. A esta altura, gostaria, sim, de (esquecendo-me da idade) realizar um (novo, não, verdadeiro) projeto literário que se consubstanciasse num livro. Tenho ideias muito vagas acerca do que poderia ser esse projeto. Garanto, apenas, que não seriam memórias...


 
[L.O.]  Professor Ivan Maciel, sabe-se que uma das suas grandes paixões sempre foi a das viagens. Acredita-se aqui que o destaque é e sempre foi para a Europa. Fale-nos algo acerca das suas realizações pessoais nesse campo.
 
[I.M.A.] Gosto imensamente de viajar. Viajei muitas vezes em companhia de minha mulher. Visitando, de preferência, países europeus, inclusive do Leste. Mas levei, algumas vezes, toda a família (filhos e netos) para conhecer a Europa. Viagens detalhadamente programadas, para que eles aproveitassem ao máximo os contatos com a cultura europeia. Confesso que sou um apaixonado por Portugal, depois pela França, pela Itália e pela Espanha.  Viajei igualmente, várias vezes, para os Estados Unidos, levando os filhos, quando pequenos, e depois os netos, para a Disney. Mas uma cidade que me empolga, sempre que a revisito, é Nova York. Sinto como se, lá, fosse uma cidade sem nacionalidade ou que contivesse todas as nacionalidades, antigas e atuais, uma síntese da espécie humana, como o Aleph de Borges em proporções reduzidas. Gosto imensamente também de Buenos Aires, pelas livrarias, pela arquitetura, pela gastronomia. Mas, ultimamente, me sinto desmotivado para viajar, em razão, óbvio, da pandemia e – psicologicamente – das limitações da idade. Reconheço que não viajei tanto quanto gostaria. Talvez porque a minha vontade de viajar fosse muito maior do que tudo o que eu pudesse fazer para satisfazê-la. Mas, quem sabe?! Talvez eu me aventure a passar alguns dias, em futuro ainda incerto, em Portugal (fiz, certa vez, uma ótima viagem de carro de Lisboa a Madri, de Madri a Lisboa, que durou cerca de um mês) e em Buenos Aires. Amém!   
 
[L.O.]   Um dos prazeres que vem cultivando ao longo dos anos é das audições de música erudita. Em que estatura a coloca na sua pirâmide de conhecimentos e afinidades eletivas? Como a música, a grande música, influencia na formação de um espírito livre e intrinsecamente humano como o seu?
 

[I.M.A.] Ouço música clássica pelo prazer de ouvir, mas estou muito longe de ser um especialista. Gosto muito, por sinal, de tudo o que Otto Maria Carpeaux escreveu sobre música e que me serve, muitas vezes, de pauta para compreensão, orientação e interpretação das obras dos diferentes compositores. Ouço as sonatas de Beethoven em estado de êxtase; o mesmo posso dizer em relação a Chopin e a vários outros compositores, mas o lugar ocupado por Bach é diferenciado – Bach é insuperável. Certa vez, numa catedral em Viena, ouvi, por acaso, um verdadeiro concerto com obras de Bach para órgão. O concertista era genial e o órgão ressoava pela catedral impregnando-nos de uma musicalidade espiritual, mística, transcendente. Havia pessoas ao meu lado que choravam de emoção. No entanto, ressalvo que o meu gosto musical abrange também a MPB, que tem coisas muito boas, diria mesmo fabulosas.    
 
 

[L.O.]  E o cinema e as demais artes?
 
[I.M.A.] Leio muito sobre a história das artes. Tenho obras magníficas que me proporcionam uma visão de espectador capaz de desfrutar a beleza, a poesia, as “mensagens”, digamos assim, embora saiba que a palavra é inadequada, das pinturas e esculturas dos melhores museus do mundo. Mas apenas isso: resigno-me à posição de espectador. Quanto ao cinema, este, me fascina. O cinema é quase tão importante para mim quanto a literatura. Entendo que certos filmes conseguem mudar a nossa forma de ver e sentir a vida. Além disso, há filmes que – como a madeleine de Proust – reconstituem fases e episódios da minha vida. Quando volto a assisti-los, redescubro o tempo perdido.