Lourival Açucena é considerado o primeiro poeta norte-rio-grandense
É Típico!
Joaquim Eduvirges de Melo Açucena é seu nome de batismo. O "Lourival" se deu em razão de sua verve como ator dramático
22 de janeiro de 2023
Por Paulo Caldas Neto
Um denominador comum é a alegada dependência das artes em relação à linguagem verbal.
Solange Ribeiro de Oliveira
Tenho pesquisado nos últimos anos sobre um dos primeiros poetas do estado do RN: Lourival Açucena. Na verdade, ainda há muita discussão a respeito de quem seria o primeiro poeta do RN. Para alguns pesquisadores, como Irani Medeiros, autor de Fabião das Queimadas: de vaqueiro a cantador (Natal: CJA edições & Sebo Vermelho, 2017), este, nascido em Santa Cruz do Inharé, em 1848, é digno de receber o título, muito embora não tenha deixado textos escritos e impressos. Já para Tarcísio Gurgel, autor de Informação da Literatura Potiguar (Natal: Argos, 2001), Açucena, que registrou sua produção para além da língua oral, merece maior reconhecimento. Longe de mim desenterrar esse debate e, muito menos, diminuir os méritos de um, enaltecendo os do outro. Apenas me limitarei a tratar aqui do primeiro poeta citado.
Meu contato com a obra de Joaquim Eduvirges de Melo Açucena aconteceu somente no ano de 2001 durante o curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ainda aluno da graduação, e já ciente da existência de uma produção literária local, quando da leitura dos versos de Horto (Natal: EDUFRN, 2009), de Auta de Souza, poetisa macaibense, decidi cursar a disciplina complementar Literatura do Rio Grande do Norte. Por coincidência o professor não seria ninguém mais, ninguém menos do que o escritor e jornalista Tarcísio Gurgel, cuja fama de exímio contista e ensaísta, à época, eu ainda desconhecia. Recordo-me de que o curso fora dividido em duas partes. Cada uma delas se deu em períodos distintos. Na primeira, estudaríamos a poesia; na segunda, a prosa. E a mim foi apresentada a segunda edição da obra Versos (Natal: EDUFRN, 1986), organizada por Luís da Câmara Cascudo, dado que a primeira edição de 1927 já estava esgotada há mais de um século. Se houver ainda algum exemplar dela, é possível que seja encontrado em alguma biblioteca pública, nos acervos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte ou na biblioteca da Academia Norte-rio-grandense de Letras. Por falar nesta, não devemos esquecer que Lourival Açucena é patrono da cadeira de nº 04, cujos ocupantes, segundo Leide Câmara, em sua obra Memória Acadêmica (Natal: IFRN, 2017), foram: Virgílio Trindade, Enélio Lima Petrovich, Agnelo Alves e Cassiano Arruda Câmara.
Joaquim Eduvirges de Melo Açucena nasceu em Natal em 17 de outubro de 1827 e faleceu na mesma cidade em 28 de março de 1907. O apelido “Lourival” se deu em razão de sua verve como ator dramático, quando em 1853 é convidado a atuar na peça teatral O desertor francês, na qual interpretaria o personagem “Capitão Lourival”, segundo o que nos informa Manoel Onofre Júnior em Salvados: livros e autores norte-rio-grandenses (Natal: Offset, 2014, p. 49 – 50). O que chama a atenção em sua vida e obra, além da boemia e do retrato de uma Natal mergulhada em um cotidiano simples, pacato e indigente do ponto de vista social, é o bucolismo e o forte lirismo de seus versos. Daí porque alguns estudiosos de seu trabalho ora o classificam esteticamente como árcade, ora como romântico, dado que, em alguns dos seus poemas, o habitat natural aparece enquanto cenário de amores idílicos e, ao mesmo tempo, como espelho de seu estado de alma. O sentimentalismo é nítido em poemas como “Delíquios”, “Eu não sei pintar amor”, “Eulina”, “Flor entre espinhos”, “Marília” e outros. Os títulos citados viraram verdadeiras canções cantadas pelo autor, que era um exímio violonista e compositor.
Henrique Castriciano escreveu (mais precisamente no ano da morte de Lourival) uma curiosa coletânea de artigos intitulados “Lourival e seu tempo”, publicada no antigo jornal potiguar “A República”, em que destaca, em um deles, a vertente musical do autor. Em uma sequência descritiva interessante, composta de nove artigos, vai contextualizando um período da História do Rio Grande do Norte no qual insere a proposta de toda a produção de Açucena, marcada por um estilo simples, parodístico e festeiro. Decerto modo, nos ajuda a compreender os rumos que ela tomou. Explorando mais o aspecto lítero-musical, deparo-me com uma rica relação interdisciplinar ainda pouco estudada. Ao ler os poemas citados anteriormente, constato que foram musicados por Açucena e viraram belíssimas modinhas, tendo, inclusive, fragmentos registrados pelo historiador Cláudio Galvão em seu livro A modinha norte-rio-grandense (Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana; Natal: Editora Universitária, 2000). Segundo o aludido pesquisador, as canções foram resgatadas graças à memória do povo, isto é, muitas delas foram passando de geração em geração, e, com a ajuda de grandes violonistas amigos, fazendo uso da percepção e do ouvido apurado, estes e o próprio Cláudio foram anotando no pentagrama musical o que pudessem compreender da melodia, ritmo, tom e tonalidade. Foi o ponto de partida para que a conexão entre linguagem poética e linguagem musical fosse percebida.
O que se notou é que Lourival uniu o útil ao agradável. Num período em que o público natalense era pouco letrado e alfabetizado, era preciso que sua poesia se eternizasse. E nada melhor que se valer de outra arte, para a qual também tinha aptidão, a fim de que seu trabalho poético não se perdesse. Mesmo com a existência de uma imprensa local, com vários jornais em circulação, tratando sobretudo de política, alguns, como “O Recreio” (1861), despontavam na condição de veículos comunicativos que abriam espaço para a publicação de gêneros da literatura. O título não veio por acaso, pois estudos viriam a mostrar que, a princípio, não houve uma preocupação no Rio Grande do Norte quanto à organização de um movimento literário e estético, mas apenas o cultivo artístico para fins recreativos. Lourival, assim, viria a ser conhecido como um modinheiro bastante popular em seu tempo. Exímio cantor e improvisador ao violão, era figura ativa nas serenatas ao luar e demais reuniões familiares, que, à época, eram frequentes e simbolizavam o principal passatempo em noites iluminadas a querosene e candeeiros. Documenta-se, ademais, a participação do poeta em igrejas de Natal pela qualidade de sua voz sempre que entoava cânticos e hinos religiosos. Às vezes, acontecia de lhe pedirem canções e fazia-as de muito improviso sem o cuidado de depois registrá-las usando a linguagem musical. Daí, conforme dito, não terem suas composições caído no esquecimento em razão de sua popularidade.
As formas poéticas usadas pelo poeta e músico favoreceram esse vínculo entre o poema e a canção. Sonetos, quadras, rimas alternadas e consoantes, além de uma métrica regular, recepcionaram bem as três partes que estruturam a música: a melodia, o ritmo e a harmonia. Um gênero como a modinha, por exemplo, de natureza sentimental precisou de muita experiência, sensibilidade e improvisação para que sua essência fosse entendida até mesmo pela gente mais humilde, uma vez que é um gênero musical que não exige para o canto bastante técnica, de modo que qualquer um pode interpretá-la no tom adequado. Foi notório, nesse caso, como o poema de Açucena herdara da poesia medieval e clássica a base para ser composto, e, com isso também, ser detentor de uma intensa vocalização. Na Baixa Idade Média, o objetivo de trovadores e jograis consistia em trabalhar a memória e, por isso, artifícios poéticos foram utilizados enquanto ferramenta musical, dentre eles: paralelismos sintáticos, repetições de versos, estribilhos etc. Toda essa tarefa requer conhecimento e muita leitura. Não é à toa que, segundo Castriciano, em um de seus artigos da série mencionada, Lourival frequentara as salas de aula do Colégio Atheneu Norte-rio-grandense, tendo aprendido latim, francês, filosofia e retórica. Já tendo uma excelente vocação para a música, e sendo sempre convidado a se apresentar em sessões solenes para autoridades governamentais, deixou-nos uma obra que surpreende por sua capacidade de congregar artes, mostrando que elas podem se completar harmonicamente, desde que haja técnica, boa vontade e perspicácia, adotando, é claro, um estilo próprio até na hora de compor. Nilo Lourival Ferreira (Sebo Vermelho, p. 39 – 40), ao biografar vida e obra desse pioneiro das letras potiguares, relata até uma passagem na qual uma senhora beata havia encomendado ao poeta uma Ladainha. Açucena, de improviso, escreveu-a e, em seguida, advertiu à senhora que iria musicar os versos; contudo, resultou que ela não se agradou deles.
Creio que boa parte do trabalho lítero-musical de Lourival Açucena é vanguardista, não no sentido de ter criado uma estética, mas no sentido de ter sido o primeiro a experimentar, no Rio Grande do Norte, uma didática interdisciplinar que demonstrasse a importância de se ver a arte como um universo uno, obrigando os estudiosos a repensarem a maneira de entendê-la, posto que quase sempre é dividida pedagogicamente em campos isolados, sem qualquer tipo de confluência entre eles, o que pode dificultar, muitas vezes, o público a enxergar a possibilidade de intercâmbios se formarem. Eu, Nelson Barros da Costa, Solange Ribeiro, Paul Zumthor, José Miguel Wisnick, dentre tantos que se dedicam a tais apreciações, já ensaiamos os primeiros passos.
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