sua retratação de modelos vivos não se atém tão-somente aos torsos nus
É Típico!
Crítico de arte Márcio de Lima Dantas estreia série de artigos sobre artistas do RN e suas trajetórias
29 de março de 2024
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
João Cabral de Melo Neto*
Por Márcio de Lima Dantas*
Madé Weiner (São Vicente, 1949) foi bastante precoce ao seguir o seu pendor para a arte, aos cinco anos desenhava as tias e o seu jabuti. Não causa espanto o fato de, aos 23 anos, aportar em Londres; aos 30 anos inicia seus estudos sobre arte. Essa permanência conduziu-a a tentar preencher os hiatos que foram sendo deixados nas rodagens e marginais, como se fossem impostas pela vida. É então que estuda no Waltham Forest College. Porém, tudo indica que não conseguia mais mapear onde perdera a calma (Quem tem alma, não tem calma, Fernando Pessoa), corroborando essa ausência de tranquilidade, estuda de 1983 a 1985 na Open Foundation Course in Art.
Não seria justo esquecer de arrolar os professores/mestres ao longo de tempos nos quais a disciplina e o talento outorgaram a tão conhecida boda que satisfaz não somente uma alma, imprime júbilos nos que apreciam a arte e fazem do contemplar telas, plenas de pathos, um sal e um condimento para uma presença no mundo, em busca de um sentido para suas respectivas existências.
Estudou pintura com Nick Wyndham, Bob Waltman e Keith Mac. Passando pela cerâmica e tecelagem com Rogério e Anne.
A nossa artista parece não precisar com exatidão o momento no qual houve a cisão entre uma rotina do que chamam “mulher” e uma tomada de ação que a conduziu em direção a uma convivência pacífica com uma inquietude da alma, possibilitando conviver com seus demônios, não havendo outra solução: a arte é esse chafurdo interior no qual não se procura, todavia acaba encontrando. Oxalá possamos especular do surgimento dessa personalidade: a mãe falece aos 22 anos, quando ela caiu no mundo: nascida. Foi adotada por Tia Alzira, uma senhora que tinha uma loja de tecidos e costurava como um alfaiate.
O amanho das tantas técnicas estudadas, ancorou seu talento no pastel seco, dando à luz a toda uma sorte de representações, quer sejam de torsos nus ou marinhas. Creio ser necessário uma classificação dos trabalhos da artista. Vejamos: Modelo vivo (1), Marinhas (2), Cerâmica de alta da temperatura (3), Pintura (4): acrílico, carvão, nanquim e pastel seco.
No que concerne ao modelo vivo (1), quase sempre os corpos limitam-se à retratação do torso. Dificilmente aparece um rosto. Há de se lembrar que a artista não busca comprovar seu domínio sobre a técnica do pastel seco. Os corpos aparecem em recortes, demonstrando que o interesse não é sobre a individualidade, sobre a persona de um sujeito, mas sagra a perspicácia de explorar o volume e a forma por si mesma. Refratando deliberadamente a ausência de apego à figura de um provável sujeito detentor daquele corpo.
Não existe interesse pelo semblante, basta observar e imprimir no papel os meandros de um corpo masculino ou feminino, fazendo valer um domínio sobre a técnica pastel seco, manuseado com grande mestria.
Assim sendo, sua retratação de modelos vivos não se atém tão-somente aos torsos nus. Há um caderno, dos anos 80, cujas páginas repletas de perfis, quase sempre masculinos, e com autêntica desenvoltura, manuseando diversas espécies de lápis e cores, refletem uma desenvoltura com relação ao desenho acadêmico. Com poucas linhas nuas sobre o papel, consegue dar conta de uma personalidade, através dos olhos ou dos contornos dos lábios, ou cabelos revoltos.
Com efeito, pode até parecer exagero, mas esses cadernos resguardam um dos melhores momentos da artista, no que concerne ao domínio do desenho acadêmico. Na verdade, qualquer retratação interna ou externa, qualquer que seja o campo de criação artística, sucede aqui uma habilidade com enorme consciência do que está elaborando.
Vejamos as marinhas (2). Afora de qualquer dúvida, uma das séries nas quais a expressão estética revela a necessária longanimidade, para que as razões primárias venham à tona e habite mãos, e pensamentos daquela que contempla os recortes da natureza. De ânimo pronto, a artista aceita apascentar formas, volumes, cores e nuances, conduzindo com ordem e consciência, estabelecendo a necessária relação que o fazer artístico precisa para vigorar com intensidade, legando aos olhares dos tantos interessados na compreensão/curiosidade de um vir a ser diferente da realidade à qual estamos habituados.
Há certas invariantes nas Marinhas. Tudo faz crer de um primeiro plano evidenciando formações rochosas em cores várias, podendo ocupar 2/3 do enquadramento. Aqui ocorrem as falésias, formações rochosas ou as dunas que concernem ao relevo das nossas praias. A artista aspergiu o seu talento e domínio técnico do pastel seco com grande mestria, mas também é possível encontrar acrílica sobre tela.
Até certo ponto, lembra-nos, algumas Marinhas de Dorian Gray, cujas telas remetem a uma indecisão entre o figurativo e o abstrato, talvez onde esse pintor tenha atingido sua excelência como detentor de um domínio beirando a perfeição dos seus gestos, das técnicas e das cores com as quais modelou, por meio de um compromisso com os pendores da sua psique. E assim foi capaz de plasmar uma série de telas nas quais a indeterminação entre os planos figurativos e abstratos esplendem diante do espectador a beleza de sua arte (tekhné).
Na cerâmica de alta temperatura (3), queimada a 1000º, também conhecida como cerâmica vitrificada,
parece que a artista se sente mais à vontade, sem os rigores e as exigências de outros meios de alcançar o timbre estético de uma peça.
Sim, há também uma série deveras interessante em Madé Weiner. São as naturezas-mortas, em acrílica sobre tela, de um requintado primor na consecução do que parecem ser flores passíveis de causar estranhamento, pelo fato de não remeterem à botânica nossa conhecida. É o caso de uma flor em tons azulados, visivelmente riscada com a técnica do pastel seco, rebenta como se fosse plissada em um tecido, mas não deixando aquele que contempla sem a ambiguidade da dúvida acerca de que espécie se trata.
Na cerâmica de alta temperatura (3), queimada a 1000º, também conhecida como cerâmica vitrificada, parece que a artista se sente mais à vontade, sem os rigores e as exigências de outros meios de alcançar o timbre estético de uma peça. Nesse sentido, o sentimento suplanta o excesso de cuidados e consciência necessários a uma feitura subordinada a determinadas leis deixadas pela tradição, como, por exemplo, no uso do pastel seco, muito utilizado pelo Simbolismo e pelo Impressionismo. Sendo aquele que vem ao mundo como um assinalado, com o farnezinho de articular coisas do espírito (no caso, aqui, artes visuais), fica com uma dívida para com estilos históricos, sobretudo os que passam pelas escolas de Belas Artes ou coisa assemelhada.
E se não consegue superar, dado o cabedal de movimentos, vanguardas, tradições, que estão sedimentados onde se deseja pisar, pode ser que logre encontrar uma alternativa diferente para ir de encontro a mesmice que repete o refrão tedioso aos pósteros. Não vale é ser discípulo comedido e sem as necessárias rupturas para inaugurar uma assinatura singular.
Suficiente deitar os olhos com atenção, para se constatar na cerâmica vitrificada o predomínio da linha curva. Ausentes de ângulos retos, as formas orgânicas demonstram sua opulência e maleabilidade, sem a simetria bilateral ou radial. Há de se buscar estabelecer relações com o que se encontra mais próximo ou determinadas formas a que estamos acostumados. Eis o surgimento de totens, estelas, fragmentos de fachadas de edifícios. Assim nos vem o estilo Art Nouveau, o parentesco mais próximo no tempo e no espaço, na medida em que Madé Weiner morou durante tanto tempo na Europa, berço desse estilo.
Curioso que a artista usa, e admite, a Cerâmica Vitrificada como espécie de possibilidade mais amena de expressão. Fica difícil não evocar o Regime lunar e noturno da deusa Selene, cujos atributos evocam o que fomos acostumados a compreender como “feminino”, mas que no imaginário não existe a pureza. Há de compreender onde auras simbólicas envolvem cada fenômeno, deixando entrever as possibilidades de sínteses entre o Regime Diurno e o Regime Noturno (Gilbert Durand, As estruturas antropológicas do imaginário).
A artista abandona provisoriamente os domínios da musa Érato (poesia lírica), desde sempre sua protetora, e conduzindo-a aos ambientes mais íntimos, haja vista os torsos nus, na clausura de possíveis alcovas, na qual corpos masculinos e femininos permitem o olhar atento de quem desenha; os perfis de rostos desenhados em um caderno, as tomadas da natureza, salientando aspectos pouco apreciados, ou originais naturezas-mortas. E saindo, provisoriamente, dessas abordagens que se voltam para o âmago, não importando se existe um ethos narrativo ou não, compraz-se em ângulos que detém um valor em si, e não por relação.
Ora, para onde ia incensar outros altares, se não para a musa Calíope (narrativa, eloquência, cura a melancolia, dom da adivinhação)? À la recherche de temps perdu, começa a organizar uma série intitulada “Dossiê do semiárido”, retomando fatos e lembranças da infância, em uma corporatura que fora depositada em sua mente por um amigo chamado Joaquim Sabão, que servia de companhia na loja da tia, atualizando-a nos informes acerca da cidade.
Nos últimos trabalhos é que se voltou, com uma espécie de pressa (o tempo urge!). A retratar aspectos e personagens da pequena cidade de onde é oriunda: São Vicente (antigamente Saco de Luísa), localizada no Seridó, onde o sol é mais inclemente, nas terras áridas do Rio Grande do Norte. Eis que surge Zefa, desenhando novas linhas de existir, reconsiderando valores a que estava habituada, após ser deixada por Abdias.
Houve, antes disso, um affaire entre Zefa e um barbeiro que só vinha à cidade nos sábados da feira, conduzindo o que chamavam “mala cheirosa”, onde havia toda espécie de utensílios para se fazer cabelo e barba. Em Zefa ele dera uma geral, pelos externos e internos. O marido enciumado abandona-a. Com a ruptura do casal, a mulher é deixada só e com três filhas. Ao que parece, era vivedeira. Também pudera, nessas terras de vegetação xerófila, haverá de ser outra coisa que não se reorganizar e enfrentar os dias quentes?
Então, surge, na Rua Velha, um novo meio de vida: uma animada casa de recursos, atraindo os homens da polis, povoada por grande diversidade de mulheres, aberta só durante a noite, visto que durante o dia trabalhavam na feitura de redes. O freguês elege para diversão que tipo de prostituta é mais condizente com a aura de determinados dias. Mas também pode ser fiel a um costume, sempre o fascínio por uma sorte de meretriz já conhecida no alcouce.
A necessidade de organizar as meretrizes na Casa de Recursos da Rua Velha, através da retratação em telas, parece conter uma pulsão que remete à noção de arquétipos, irmanados por força centrípeta, ajuntando as mulheres e fazendo-as representar no grande teatro do mundo. Necessário papel para que o palco da vida, assim como suas leis do cotidiano, tenha uma dinâmica. Ainda, o lupanar acolhia as mulheres que não se enquadravam no status quo de uma sociedade regida pela necessidade da vigilância e da implacável punição (Foucault). Fosse quem fosse, sempre houve o inevitável do outro um tanto vulnerável, um muito de ingenuidade, o cotidiano como o dia que se achega com suas errâncias, ser apontado como “anormal”, para que o grande coro social não desafine. Como era de se esperar, João Sabão recebeu a pecha de “doido”. Assim se fez, por uma necessidade (dynamis) que rasga as duas mãos: uma de dentro (psique) e outra de fora, do coletivo (enteléquia). Emprego livremente a terminologia de Aristóteles.
Com efeito, Zefa, a comandante em chefe do Cabaré, era obesa, para completar a compleição do que o destino conduzirá a vir a ser uma cafetina, por não valer no lupanar pelos atributos do corpo, rege-se pela perspicácia dos olhos e da audição, exclamando seu verbo persuasivo a imprimir valias do ambiente nos fregueses. Nininha era a dançarina, animando por meio do corpo e da música o bordel. Lica era mais recatada e misteriosa, talvez por não se interessar muito pela retórica. Ziruca era a mais falante, um tanto extrovertida, a eloquência era parte do seu charme. Em síntese, como dissemos, a musa Tália (da tragédia e da comédia/festividade) regia os carrilhões que movimentavam a cena viva que é o humano em evidência. Teatro ou circo: quase a mesma coisa.
Deixe ver se ainda posso acrescentar algo. A obra da artista Madé Weiner configura-se como espécie de inópia, em cuja corporatura subjaz o traço vincado de uma aproximação com sua história de vida. Mesmo tendo ido parar em Londres, locus onde aprendeu todo um conjunto de técnicas, e, ao que parece, foi-lhe incutida a necessidade da disciplina, do método e da consciência de se deixar habitar pelo trabalho para com a arte. Havendo de lembrar que toda uma constelação de imagens e enxames de símbolos estavam amainados no seu imo, desde sua infância de órfã criada por uma tia costureira. Quando juntou as duas pontas do seu percurso, voltando para si mesma, chegando em São Vicente.
Também faremos a cobra engolir seu rabo. Encerramos como começamos, com o poeta pernambucano. “Homenagem renovada a Marianne Moore” (Museu de tudo):
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?
João Cabral de Melo Neto *
*Márcio de Lima Dantas é professor aposentado da UFRN. Crítico de arte.
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