Xico Santeiro foi um dos maiores representantes da esculta popular. Foto acervo Museu CC

Colunas

Madeira de uma árvore como raiz desse chão

Poeta escreve sobre o grande mestre no entalhe da madeira: Xico Santeiro é malha e calha. telha como percurso da sua horta, porta, profeta

15 de setembro de 2020

Carlos Gurgel | poeta

Meia noite dessa ponta da cidade, semelhante dessa terra, ciência de um quintal que beira a sorte de uma inumerável lousa, um puxado de calçada. Decalques de buracos pela rua. Bélica bica por onde a aguardente intacta de besouros e maresia, se faz presa e palco. Prantos e cânticos se enroscam, entoam pela cidade um tanto de uma reza vencida. O sino da igreja flameja, como o ungido umbigo de um boi desfalecido. O tapume da casa da rua sem panelas, arqueja. Como trela, ciúme de que tudo vê e sente. Cheiro de isopor por sobre os telhados como fruto dos vultos dos picolés. Fio que enrosca essa entretela pelo meio das ruas nuas dali. Fragrâncias de uma lonjura, ponta de uma cilada ávida. Cidade impávida e provinciana. Insurgências dessa fortaleza do cotidiano, que ao longo do tempo remói molduras, como réplica do quadro desbotado da memória dessa sala, desse albergue, torto e sem til. Pios de pintos, pipocos, bambus de uma largueza de tanta respiração, trovejante embarcação. Fumaça, muita fumaça, pras bandas de mãe Luiza. É chegada a hora de muita tapioca na palma da bananeira. Moleques, pirralhos grisalhos transitam na rua com suas bregas bolas de jogo, de restos de tecidos. Tarã, o marginal que namora com a noite, tão escura de munturos, entulhos, gorras de tapumes, rodeios, vexames desses bares e berros desse bairro. Larápios de trouxas viajantes, e do percurso da volta, do que foi pego e do que ficou para trás. Tanta traça na mesa, na massa, pirraça, desgraça desse circo moribundo. Barco de biroscas bíblicas como o pecado que rola solto por sobre a descida, do declive da rua despida de tantas compressas e açougues.

Desfalecida é a mãe, sentencia a turma da rua de baixo, prova e pólvora do rastro, de provocação aos da turma de turba escura, maligna. Subidas e descidas desse bairro torto, mirra de aborto, morro de empecilhos, tudo no convés da listra que separa o meio da rua com o meio fio da fome. Cambraias de pontas de faca. O desjuízo se espalhando pelos azulejos intactos de um bairro infecto e bendito. Beltrano, no mais tardar, ao longo do dia, massacra e mascara mais uma berlota, suculenta, daquelas afoitas, aflitas, repletas de brio. Tudo assim tão despejado no rosto, no resto, na réstia desse país, arrodeios de juramentos sem giz, gambiarras, enxames tão infames de vexames. escuridão. Tentáculos, vielas dessas ruas sem fio, rio dessa labareda do coração faminto, à morte. Rebento queda ao solo desse átrio, varrido desse córrego dia, manhã de múltiplas borrascas, borrachas, arquejando delinquentes pés e um arpão de coleiras vadias. Amotinadas porções dessa beira de bairro, como o cheiro da maresia, picotada da matéria farta de tantos desamores arredios. Loucas dessas pessoas que vagam à mão cheia. Nesse platô, o que menos conta é o baque de um segredo, o que vinga é o sangue que escorre por sobre o poste benzido de arruaças e de tantos temidos esquecimentos. De tanto porre dessa fútil alma sem cor, sem amálgama, sem zás trás, sem ter para onde e ir e voltar.

O zunir da noite pelo insulto, plebe obscura e incerta, única listra por onde os feridos e rubros marginais se dão conta: essa fornalha canalha, sofreguidão. esse ar, lerdo largo beco de beca sem boca e beijos brutos, carrega dentro de si, a diáspora de uma igreja assassina, repleta de beocios fósseis como negócio de uma madrugada insana e mequetrefe. essas pontas de casas, de janelas para o além. barras, bípedes barbas bordadas borradas de tantas bárbaras brilhantinas como se fossem beiços sem brilhos dessas tocas toscas, nos tic tacs purulentos desse sol à pino, e a pau desse pífio palmo sem plano e plantio. esturricado, o céu do bairro, desaquece romances, como a cadência e a carência das cabeças dos tresmalhos que de tão decanos e inclementes, repletos estão de réplicas insônias e da mais incalculável remissão. troncos e trancos, relutância desse refil, desovada ostra, sobrevivência se espalha, amotinando os ouvidos de uma senzala, couraça e umbanda, sem armisticios alimentícios e porvir.

A madeira como insuspeita rainha do lar, brasão, epicentro do que um homem vestido de luminosa teia, grade, arte; une, glorifica e se espalha. suas mãos, como catedrais intactas, arrastam com seus parrachos e indescritíveis traços; expedições, imersão da matéria prima que ele leva eleva e espalha. confecção de um outro templo, benzido de cíclicas porteiras, ramagem divina, a fina flor da varanda desse bairro, arco, braço de barco e berço, chantado de pescoços soltos, como flor que prospera e polvilha. Xico Santeiro é malha e calha. telha como percurso da sua horta, porta, profeta desse clarão sem dor, sem cofres, sem açores, sem chão. tudo que vem dele são como desmaios dessa desmétrica pululante floração. pavio, religião que não existe. assim, plumagem salvadora e pagã. larguíssima ramagem que vagueia pela rua sem dono e portão. Chico sem rédeas, galopa outro universo único, translúcido, como febre do que alucina tanta crina, criança, esquina de tantos ex-votos, curtiços de fé, portos por onde a porta da liberdade sorri e baila. tanta figura farta feita e fantástica. tanta dessa imensidão dessa multidão liberta, como rastro de alforria, remanso das costas e dos rostos e restos livres, como procissão de uma praça repleta de bules, cruzes e incontáveis miragens, milhares de margens desse céu límpido, um tanto de um véu incomum.

Santeiro, profano e sagrado. bíblico, ibérico e carnal. lacre. ribeira da feira do seu bairro, sábado sem súbitos assaltos aos palmos das pontas dos seus pés. fécula, arqueiro, arquétipo, frade, padre, infante, senhor dessa selva de sortilégios e trovões. propagador de tanta incontável matéria viva, lavra da cristalina extensão dessa malha, mata, galhos, raízes, moleira. regalo de luminosas e irrecusáveis promessas e percursos. tamanha manhã desse artesão, marceneiro e discípulo de tantos mastros e poemas. raspas duras, armaduras de tantos talhos profundos e perpétuos. como mão de um Cristo liberto da cruz e do incontido alpendre, porto de pólens e partículas terrenas. pois que esse armário, imaginário calendário,  incontavel reino de Santeiro nos benza. bússola, liberto perímetro das árvores, cume e flor desse chão, fermento e crosta sagrada desse ser, desse grão. como sumo, líquido que escorre pelas raízes do seu amor, fruto de tanta delícia e paixão.