Mais Mulheres na Cultura é um projeto indispensável por que fortalece a cena cultural. Foto: Freepik

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MAIS MULHERES

É importante que se olhe para o passado para compreender como o projeto Mais Mulheres na Cultura é tão necessário e indispensável

26 de maio de 2022

Clotilde Tavares

Nesta semana que passou, me convidaram para falar num evento de mulheres. Era o lançamento do projeto Mais Mulheres na Cultura. Uma tarde linda e agradável, no IFRN das Rocas, um largo espaço ocupado por cerca de 150 mulheres que ali estavam e onde ficamos por três horas, participando das discussões e atividades.

A pandemia me deixou com fome de palco e de plateia. Dois anos de isolamento me fizeram crer que eu nem sabia mais falar direito. Mas quando vi os olhares e sorrisos voltados para mim naquela tarde, fiquei tão animada que, se não tivesse levado um texto escrito para me nortear, eu ainda estava lá falando. Como conheço minha natural prolixidade e como sei que muitas vezes fico descontrolada diante de uma plateia animada, tracei o resumo do que ia dizer e prudentemente não saí dele para não ultrapassar o tempo regulamentar de 15 minutos.

No final do evento, muita gente pediu para eu publicar algumas daquelas ideias e exemplos. É isso que estou fazendo agora, neste espaço, ampliando algumas colocações e acrescentando outras, sempre dentro das minhas áreas de atuação que são o Teatro e a Literatura. 

É importante que se olhe para o passado porque, muitas vezes, olhamos ao nosso redor, no presente, e tomamos essa realidade como dada, como natural, pensando que “sempre foi assim”. As pessoas mais jovens, de menos de 40 anos de idade, não viveram o que viveu a minha geração, 30 anos mais velha. E se a gente recuar bem mais no tempo vamos ver que a mulher era pouco mais do que um objeto doméstico, e que ultrapassou os séculos sendo considerada desta forma. 

Por exemplo: não é curioso que no teatro ocidental, que começou na Grécia, no século VI antes de Cristo e completa neste século XXI cerca de 2.600 anos de atividade, repito, não é curioso que tenha sido permitido à mulher subir ao palco como atriz somente a partir do século XVII? Numa história de 26 séculos estamos no palco há apenas 3 séculos e meio!

Muita gente não sabe, mas o palco não era lugar para mulheres, e as que se atreviam eram consideradas imorais e chamadas de prostitutas. Os papéis femininos eram representados por rapazes jovens e ainda sem barba. Todo o teatro elisabetano, da época de Shakespeare, era representado totalmente por homens. Julieta? Era um rapaz! Ofélia? Também era um rapaz! Lady Macbeth? Outro rapaz! A ama de Julieta? Não era um rapaz, mas continuava sendo um homem, embora mais velho. As mulheres começaram a subir ao palco para representarem papeis femininos inicialmente na França, na primeira metade do século XVII e depois o costume espalhou-se pela Europa.

Atualmente, com o culto das celebridades e também sob a influência primeiro do cinema e depois da televisão, o palco passou a ser um lugar desejado, onde as mulheres podem pisar sem serem condenadas por isso. As famílias se orgulham quando uma de suas meninas faz sucesso na novela ou quando atua em peça, filme ou série de TV. Mas ainda há sociedades, ou setores dela, que proíbem ou condenam essa atividade pelos mesmos motivos alegados na Antiguidade.

Eu me lembro de episódio acontecido comigo no início dos anos 1990, numa grande cidade do interior onde eu estava em temporada com um espetáculo de teatro. Jantando no restaurante do hotel, fui convidada por um homem a fazer companhia a ele numa mesa, “para beber com ele”. Quando recusei, ele se admirou. Mas você não é do teatro? ele disse. Ele realmente achava que atriz e prostituta significavam a mesma coisa, e o convite foi feito nos mesmos moldes usados num bordel.

No teatro, além de atrizes, as últimas décadas abriram espaço também para as mulheres serem dramaturgas, escreverem crítica de teatro, a trabalharem com figurino, com cenografia... Todas essas funções na cena passamos a ocupar, mas também há muitas outras atividades onde os homens predominam, sabe-se lá o motivo. Eu sempre digo a quem quer fazer teatro – porque geralmente essa pessoa quer sempre ser ator, ou atriz – que há muita coisa interessante fora do palco. São tarefas que precisam ser desempenhadas para que o espetáculo possa acontecer. Um exemplo são as funções técnicas e criativas de iluminação teatral, um campo sempre solicitado, com pouca gente disponível, e com pouquíssimas mulheres na função.

Falemos agora da Literatura.

Na Antiguidade e Idade Média contam-se nos dedos as mulheres que produziram textos escritos, uma atividade quase que exclusivamente praticada por homens. Somente a partir do século XIX o número de mulheres escrevendo aumentou. Mas há um dado que pouca gente sabe. Já ouviram falar de George Sand, Nicolas Podolinsky, George Eliot, Ellis Bell, e seu irmão, também escritor, Currer Bell?

Eram mulheres! Escondiam-se atrás de nomes masculinos para poderem publicar, para poderem ser aceitas. Ellis Bell era o pseudônimo de Emily Bronte, umas das irmãs Bronte, autora de um romance famoso que muita conhece: O Morro dos Ventos Uivantes. Foi publicado sim, mas com nome de homem. Nem os editores sabiam que era uma mulher, só se soube depois. E Currer Bell, seu “irmão”, também era mulher: a escritora Charlotte Bronte, autora de livro também famoso, Jane Eyre. Ambos os romances são conhecidos e foram adaptados para o cinema.

No Brasil, um caso conhecido é o de Altino Alagoano, cordelista que atuou na Paraíba nas décadas de 1930-1940. Pois o Altino era uma mulher, Maria das Neves Batista Pimentel, a primeira mulher a escrever cordel, em 1938. Assinou com nome masculino para ser lida.

Eu mesma sempre usei pseudônimo masculino para concorrer a concursos literários, porque vez por outra fazia parte de comissões julgadoras e via como o machismo dos membros homens das comissões simplesmente fazia com que eles não dessem importância às obras que vinham com pseudônimo feminino. Liam, mas tratavam como coisa menor e sem importância.

Que citar ainda o caso das mulheres que escreviam, mas quem assinava a autoria eram os maridos – assinavam a autoria e embolsavam os pagamentos, como se essa atividade fizesse parte das obrigações do casamento. São inúmeros os casos e um deles é o da escritora francesa Colette, que também foi transformado em filme.

Escrevi um texto intitulado “Os Sussurros das Mulheres”, citando muitos outros casos. Além da publicação em blogs, o texto virou um episódio do meu podcast que você, que não tem tempo de ler, pode ouvir enquanto se dedica a outra atividade. Os links estão no final. 

É por isso que este projeto, Mais Mulheres na Cultura, é tão necessário e indispensável. É um projeto que inspira força, potência e principalmente esperança significando, para muitas mulheres, empoderamento e autonomia, além de fortalecer a cena cultural. Consiste na oferta de oficinas de capacitação técnica para inúmeras atividades na economia criativa, onde se abre um campo variado para as mulheres. É um projeto todo construído por mulheres, e para mulheres, porque para esse protagonismo feminino se firmar, precisamos de condições que ainda não temos e que ninguém vai construir para nós a não ser nós mesmas. 

Na conclusão, nunca é demais lembrar daquelas mulheres que viveram apenas no espaço doméstico, que nunca puderam deixar florescer seus talentos. Quando escrevemos, atuamos, falamos em público, montamos um palco, editamos um vídeo ou lidamos com uma planilha de custos, representamos todas essas mulheres que não puderam ir além do círculo doméstico.

Elas estavam cuidando dos filhos, fazendo a comida, lavando a roupa, mantendo de pé a estrutura doméstica para que, primeiro os homens e depois e aos poucos outras mulheres privilegiadas, pudessem exercer os seus talentos. 

Elas precisaram ficar em casa para que muitas mulheres pudessem estar, como estou aqui agora, compartilhando com vocês esses temas, esses desejos, essas ideias. 
Uma dessas mulheres foi minha mãe, Cleuza Santa Cruz Tavares, a quem sempre renderei justa e emocionada homenagem.

Links do projeto Mais Mulheres na Cultura
Instagram - @maismulherescultura
https://linktr.ee/maismulheresnacultura  

Outros links
Artigo “Os Sussurros das Mulheres” 
*Texto - http://clotildetavares.com.br/literatura/artigos/os-sussurros-das-mulheres/
*Podcast - https://open.spotify.com/episode/733h9YBpBpI68Jh7FfVFxf?si=f6c72e38711f4d6f 

Sobre minha mãe: http://umaseoutras.com.br/a-marquesa

 


Contatos: http://linktr.ee/ClotildeTavares | clotilde.sc.tavares@gmail.com