A figura de anti-heroi emerge da base da pirâmide oprimida estando a serviço da quebra de status quo

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Malandragem: a saga lítera de Chico Doido de Caicó

Agora com tenda armada na praia de Pirangi, Leon Góes se prepara para projeto. Vai levar para telinha a vida-obra de Chico Doido

18 de outubro de 2020

Dácio Galvão 

Essa onda do anti-herói picaresco na literatura é bem antiga. Meados do século XVI! Do marco de transição do renascimento para o barroco europeu pintou como contraponto às prosas narrativas dominantes sentimentais e cavalheirescas sempre previsíveis e bem comportadas. Aconteceu emergindo na paródia e satirizando os valores constituídos da sociedade cristalizada no bom comportamento aonde costumes pastoris ou ‘urbanos’ correspondiam literariamente a uma esperada e aceitável psicologia. 

Figura que emerge da base da pirâmide oprimida estando a serviço alegórico e pragmático da quebra do status quo estabelecido. Portanto, personagem assim nunca esteve fora de moda. Obviamente por aqueles criadores que persistem em não aceitar o cânone como a via de mão única de expressão. Há quem defina um cânone do pícaro, mas...

Nessa batida é que surgiu a figura de Chico Doido de Caicó ou Francisco Manoel de Souza Forte. Não se estranha se foi concreta ou inventada - eis o enigma - por dois seridoenses: Nei Leandro de Castro e Moacy Cirne. O dilema, se existe, é secundário. A ilustríssima personagem os autores convergiram e levaram a efeito uma figura satírica e irreverente. Chico teve um livro póstumo publicado com o título "69 Poemas de Chico Doido de Caicó" (Natal: Sebo Vermelho, 2002). Portanto, sua narrativa se converte na estrutura da poética. Entre a possibilidade da existência real ou ficcional, teve seus poemas difundidos por Castro e Cirne durante os anos de 1991 e 2002. A biografia de Doido, o marinheiro mercante que saiu de Caicó para o subúrbio do Rio de Janeiro, nascimento e morte, é precária e obscura.

Fato é que encenada a peça Chico Doido, de Caicó, dirigida por Leon Góes, e apresentada em temporada por dois meses no palco do Teatro Villa Lobos - RJ, teve enorme sucesso com direito a artigo no jornal francês Le Monde. É ver para crer. E, claro, vasculhar nos arquivos do periódico de reconhecimento planetário.

Precisamente agora com tenda armada na praia de Pirangi, Góes se prepara para novo projeto. Vai levar para telinha a vida-obra de Chico Doido. Entusiasmado, tem o roteiro in progress no papel e na cabeça. Um roteiro amplo no sentido da abertura estética desenhado na linha de uma obra continuamente em construção. Já detém, a espinha dorsal e as variantes possíveis. O idealizador viaja quando fala. Sendo também ator teatraliza e projeta a cena caracterizando simultaneamente os personagens. Transfigura o interlocutor para dentro do filme que já projeta como tal. Tipologias, falares pícaros, recortes de fundo de cena...

E revela detalhes da ideia indo da poética de Zé Areia, Gregório de Matos, Zé Limeira às estripulias de Camonge o sabidão anti-herói da oralidade nordestina; chegando a Moisés Sesyom...Vai destilando e descrevendo o script de personagens que irão compor a saga lítera do Doido. Descarrilha no verbo e descreve cenários, repertórios, diálogos tudo num universo irreverente e leve numa sutilíssima malandragem aonde a quebra do conservadorismo é riso e risco ao monumentalizado. 

O projeto é radicalmente localista e por isto se pretende extrapolado nas latitudes de demandas universalizadas. Aliás nada melhor do que ser fiel ainda que coincidentemente(?) as investidas que marcaram as personas irrequietas de Ney e Moacy. Seja no engajamento vanguardístico inicial das suas militâncias literárias quando integraram o movimento do poema processo ou nas investidas transgressivas de um dado rumo, digamos amadurecido, de seus processos criativos como no caso do Chico Doido, de Caicó. Essa santíssima trindade Castro-Cirne-Góes já vem abençoada por uma estrada que lida com a malandragem sendo suporte e vociferação do sarcasmo popular.

Nada melhor navegar em tamanha possibilidade. Os tempos estão obscuros. Vamos todos ganhar nessa empreitada!