Descobrir e renovar-se, mas antes morder o rabo muitas vezes

Colunas

Mordendo o rabo da batata ou encarcando os dentes no piso

Viver é um eterno refazer-se. É envelhecer e rejuvenescer diário, crítico e constante. Sem isso, seremos o entulho no carro-de-mão da quimera

04 de setembro de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

Como os caminhos se formam? Honestamente, não tenho uma única resposta para essa indagação. Aliás, não tenho resposta alguma. Os caminhos podem se formar a partir de um estudo feito pelas engenharias, da idade moderna à contemporânea, que ocuparam os espaços com paralelepípedos e asfaltos; como também por outros/as que, remotamente, desbravaram as fronteiras (bem antes dos recursos da atualidade) com seus astrolábios e bússolas de outrora; como por aqueles/as que vieram antes das ciências, antes de tudo, que cavoucaram pela natureza em busca de uma segurança de vida e, consequentemente, alimentar e mística. Muitas são as verdades e as hipóteses. Entretanto: tudo é uma consequência do seu tempo.

Hoje, por exemplo, a conquista visa à ocupação do universo. Bilionários e Estados patrocinam e investem fortemente em pesquisas e tecnologias, que tenham como finalidade os anseios desses conquistadores por esses novos mundos. Talvez, aí, esteja presente o caráter da vaidade: olha, fulano de tal conseguiu ocupar o lado oculto da lua; sicrano conquistou o hemisfério norte de Marte; os EEUU, a China ou a Rússia chegaram à calota polar de Plutão. Mas, também, pode representar uma conquista para toda a coletividade, levando em conta o melhor da minha ingenuidade. E assim segue a construção por novos caminhos, entrelaçada à angustiante e à maravilhosa condição humana. 

Entretanto, para mim, a melhor construção do caminho é quando eu me perco. Explico: aqui não está nada associado ao campo do romantismo. Pelo contrário, é uma situação bem pé no chão: real. É quando constato um tipo de situação que posso comparar à ideia de suspensão do filósofo Gilles Deleuze. A particularidade desse caso é observada em pequenos movimentos da sociedade, que servem de resposta para as minhas mais difíceis dúvidas. Pronto, agora embaralhou tudo! Vou tentar explicar melhor!

Anteontem, passando de frente a uma obra, percebi que algumas cerâmicas estavam sendo depositadas no cata-entulho. Procurando por outros objetos, além daqueles que enchiam os pequenos carros-de-mãos, dou na vista com um azulejo que estampava algo parecido com um mapa ou um pequeno caminho. De pronto, a curiosidade foi atiçada e lá fui eu montar aquele quebra-cabeça. Suspeitei que pudesse ser um segredo e que estivesse demasiadamente protegido pelo tempo da construção. Sim, tratava-se de uma casa antiga, bicentenária. Uma relíquia colonial. Recolhi o material com a ajuda da Estelita, operária da obra, que vibrava a cada junção das peças. Nos olhos da moça vi que o interesse dela aumentava a cada encaixe. Acredito que ela pensava que estávamos diante de uma valiosíssima descoberta. Quando, sem avisar, um grito atravessou as paredes: Lita, corra, vem carregar mais lixo. Deixe de vagabundagem, fia do cabrunco! Ela tentou argumentar que estava me auxiliando na montagem de um segredo. Mas não teve jeito. A simpática moça teve que voltar ao trabalho braçal.       

Continuei no meio dos vasculhos a juntar os meus caquinhos. Duas, três horas depois da coleta, percebo que pouquíssimas chaves faltavam para decifrar aquele segredo. Até que um dos operários, observando a estampa do azulejo e virando para mim, disse: a vida é para morder o rabo da batata ou encarcar os dentes, doutor. Antes, pensava muito mais nos outros do que em mim. Hoje, procuro cerrar os meus caninos no meu caminho. Na minha realidade. E a minha realidade é esta: migrar para me contentar. 

Fiquei assustado com a breve revelação ao instante que também encontrei a resposta para a minha dúvida: caminhar é juntar os cacos pelos caminhos e transformá-los em novos cacos que mais tarde já serão velhos novamente. É um eterno refazer-se. É um envelhecer e rejuvenescer diário, crítico e constantemente. Sem isso, seremos sempre o entulho no carro-de-mão da nossa própria quimera.