Rio Guaraíras, Tibau do Sul

É Típico!

Mulheres: canto de reza nas incelenças de Dona Biga e Dona Noêmia

As vozes e os cantares da religiosidade popular no ritual de despedida, onde o profano e sagrado se entrelaçam sem conflitos

04 de julho de 2020

 

Dácio Galvão | Escritor, produtor cultural, gestor

Numa pequena extensão sinuosa da estrada RN-003 margeando águas salgadas estão fincadas raízes de culturas ascendentes formadoras do nosso localismo. É possível auscultar vozes atravessando passado presente e futuro no Território Criativo Guaraíras. 

Dona Noêmia, tez preta e temperamento recluso. Recolhida, cachimbava. Duas bicadas de cachaça, descia bem na discrição. Humorada ignorava qualquer censura. A do filho Caroba no olhar e no resmungar era desprezível. Em reuniões festivas logo se destacava o corpo comprido. Estatura física lazarina. Asseada altiva abria quase-sorrisos e se anunciava com poucas palavras. A mão sempre à boca para não escancarar a dentição incompleta. De conversas curtas. Sua casa à esquerda aponta a lagoa e à direita a casa do companheiro. O taciturno Seu Jacó (em grego “aquele que lutou com Deus”) um caboclo detentor de repertório quinhentista oral para embasbacar qualquer linguista. Uma escuta da sua fala no barraco de palha o tempo deslizava. Não passava. Nas esquinas e botecos a fofoca era de que não havia separação de corpos. Contudo não abria mão em lavar a roupa de Seu Jacó. Nesse ponto era intransigente. Fechava o bate papo. 

Quando a fé estava em jogo se concentrava. Contrita olhava o defunto entoando cantos de mortos, benditos ou excelências. Esse dom do canto oriundo da tradição mnemônica moura-judaica fazia o diferencial. A estampa queniana sentada ereta nos tamboretes de salas em casas de falecidos humildes era escultura conhecida. Velava corpos e almas. Durante vigílias fúnebres reprimia comportamentos inadequados de crianças e adultos. Não era incomum o clima de tristeza virar espaço social para dada brincadeira ou curtição A voz no tom elevado caracterizava a ladainha triste lúgubre. Saía na frente puxando a reza a monotonia a dor e a esperança de que anjos condutores direcionassem almas desencarnadas para o paraíso que lhe fosse justo. 

No Carcará, litoral leste localidade onde nasceu, viveu e morreu, Dona Noêmia, deixou prole espalhada. Nenhum descendente levou a efeito seus saberes orais. Quando se foi, os levou. Ficou no ar reverberando seu ato de louvação de uma margem para outra da Lagoa Guaraíras, naquele tom agudo que nunca vai calar: “Ó, meu pai, eu vou p'ro céu / Um anjim vai me levando / De tudo eu vou me esquecendo / Só de Deus vou me alembrandro / De tudo eu vou me esquecendo / Só de Deus vou me alembrando”.

Tinha uma parceira. Ambas costumavam cantar-rezar juntas em estímulo recíproco. Dupla que formada com Dona Biga, naturalmente Abigail. Casa de frente para estrada, de costas para lagoa-mar. Visual que testemunha a saga bélica colonial luso-holandesa. Do quintal se mira a Ilha do Flamengo palco de combates sangrentos. Cenário vivo. Encravada no limite das localidades de Cabeceiras e Munim. Preá seu companheiro de toda vida era ativo no raspar de mandiocas, nos cantares de farinhadas. Também de articular mutirões para o fabrico do alimento. Os tempos atuais varreram as Casas de Farinhas. Não mais existe a cultura do fuso, do rodete, da conga, da manipueira ou da carimã para receitas de beijus de mandioca mole. O “beiju azedo”. Envoltos nas palhas de bananeiras era alimento indispensável na Semana Santa. A cena se foi: a carimã fermentada, acomodada em sacos de tecido de algodão, reciclados de embalagens de farelos de trigo, e a correnteza do rio perpassando o tecido lavando a massa. Técnica rudimentar deixava no ponto exato para manuseio e consumo.

Para Dona Biga essas lidas e afazeres predominava para economia doméstica. Hoje se exercita na renda de labirinto em produção pequena e talvez por isso mesmo tem um traço, um ponto especial. Quando se refere as incelenças retruca: “O povo não quer saber disso mais não. Deixaram de fazer quarto para os defuntos!” Traduz a desfiguração dos velórios com ladainhas. Sempre foi a mais dada a organizar e provocar os cantares da religiosidade popular no ritual de despedida aonde o profano e sagrado se entrelaçam sem conflitos. Durante a celebração, na noite anterior ao dia do sepultamento, varava horas entoando benditos compartilhando comidas e bebidas alcóolicas. 

A forte tradição lusitana bem marcada nas regiões de Douro da Beira (Alta e Baixa) e do Minho veio se traduzir nos lares potiguares postados numa geografia de remansos. Todos demarcados pela natureza na densa floresta de manguezais formados por Canoés e Sapateiros.  Nas noites iluminadas por piracas, candeeiros e lâmpadas incandescentes de filamentos se ouvia e se comovia.

Das salas e quartos pobres essas liturgias laicas migraram para dar sentido amplificado ao componente antropológico. As amigas-irmãs cantadeiras Dona Biga e Dona Noêmia estiveram presentes no Teatro Alberto Maranhão se apresentando na Semana de Cultura Popular, realizada pela FJA na administração do jornalista e escritor Woden Madruga. Depois, fixamos suas vozes no CD Romances & Cantos de Excelências. Gravamos seis faixas: São Benedito, Maria com Luz, Ô Alma, Espada de Dor, Dois Apóstolos. Eu vou pro Céu. Na ficha técnica figura um timaço: Joana Lima fazendo fotografias (das cantadeiras) e Giovanni Sérgio da capa da capa cujo Oratório-objeto cenográfico fora criado por João Marcelino para peça O Príncipe do Barro Branco. Dácio Galvão fez a direção artística e musical e assinando o Projeto Gráfico o designer Marcelo Mariz. 

Daí, se ganhou o mundão. Foi fonte inspiradora para a peça musical Revisitação dos Santos Reis, composição sinfônica composta pelo macauense Antônio José Madureira, integrante do Quinteto Armorial idealizado por Ariano Suassuna.

Depois aconteceu a releitura interpretativa de Xangai acompanhado do Quarteto de Cordas da UFRN para o CD Toques & Cantares. Esse fonograma veio a compor a trilha sonora do filme O Homem que Desafiou o Diabo, dirigido por Moacyr Góes e produzido por Luiz Carlos Barreto. Filme baseado no livro-romance de Nei Leandro de Castro, As Pelejas de Ojuara. Pinta na trilha o rasgo do canto das memórias dessas duas incríveis mulheres: “Ô alma por quem tá esperando / Por uma incelença que está se rezando...  Uma incelença do Senhor São Benedito / Ele chorava, ele dizia, ele se lastrimava / E a estrela quilareava”.

Ano passado o músico e compositor Egberto Gismonti que foi aluno do compositor Jean Barraqué, discípulo de Anton Webern e Schoenberg manifestou interesse documental na liberação de direitos autorais do CD Romances & Cantos de Excelências. A justificativa é reler parte do legado etno-musical de Dona Biga e Dona Noêmia, numa perspectiva de lançar em voz feminina, através do seu selo, esse material no mercado europeu. Que assim seja. Estetizar o rito não é o caminho. Entretanto, os aspectos e complexidades que envolvem a dinâmica da indústria cultural e da economia criativa numa ótica capitalista pode ao menos nos fazer disseminar o fenômeno.