Paulo Leminski, um devorador de tradições. Dico Kremer
É Típico!
O olhar leminskiano sobre o imaginário grego
13 de setembro de 2024
Cicero Bezerra
Que Paulo Leminski era devorador de tradições não é uma novidade. O punk parnasiano, o quase monge zenbeneditino, transitava de Atenas à Jerusalém como quem caminha entre Juazeiro e Petrolina. No ano em que comemoramos seus oitenta anos de existência (2024), resolvi mergulhar em sua Metaformose - uma Viagem pelo Imaginário Grego (Iluminuras, 1998) como quem, em espelho, se vê refletido na imagem brilhante produzida pelo poeta curitibano sobre os mitos e suas meta-formas. Para tanto, ouso, como o condenado cego, caminhar errantemente nas águas reveladoras do texto de Leminski.
Por onde começar? Pelo início e dele fluir em contorções cíclicas de cobra que engole a sua calda. No princípio está Sísifo, senhor da pedra, imagem da transformação em pó sobre a qual “muitas lendas se edificarão” (Leminski, 1998, p. 15). Depois, veio Narciso, o mais feliz até enxergar a própria imagem: sentença daquele que nada vê. Tirésias ri da luz. Para Paulo Leminski, assim como Sísifo rola montanha abaixo sob o peso da pedra e Narciso “cai na água” como Ícaro das alturas, os mitos se cruzam sem pontos estanques. Quem manda aceitar presente de cera feita por mãos humanas? É assim que o mesmo arquiteto, criador de simulacros, Dédalo, o facilitador do coito maldito entre a rainha Pasífae e a besta branca (touro), surge na narrativa como quem foge da condenação de ser o que é. A impotência do pai que voa com seu desobediente filho, converge em Narciso, naufragando em águas profundas. Junto, Leminski submerge na turbulência narrativa fazendo Narciso contemplar quedas como rodas que geram rodas. No exercício mítico-poético a ordem e a violência emergem em sangue, em pênis e testículos ceifados por um Deus Tempo que reestabelece o movimento dos astros.
O samurai de amplos bigodes olha o filho cortando a fecundidade do pai, parricídio primordial, crepúsculo dos deuses e nascimento de toda beleza: Afrodite. Nas entrelinhas ouve-se Eco gritando: Narciso, Narciso, Narciso! As palavras vibram, dessa vez como um pênis-espada de bronze de um herói, Teseu, que caminha em direção ao coração do homem-besta. Narciso prefere tapar os ouvidos e entrega-se à monotonia das tranquilas águas. Tudo se cala. Narciso é metaforseado em Minotauro, monstro diante de si, da espada micênica que, por sua vez, se vê metaforseada, também, no Minotauro: “Teseu e o Minotauro são uma só pessoa” (Leminski, 1998, p.17). Humano, besta, humana besta, humanos bestas. Quem mata quem? Submetido ao fio da espada, Minotauro chora “como uma criança” (Leminski, 1998, p.17), feto que se silencia “no definitivo da morte” que tudo unifica. Finda o dia. No espelho, reflexos de astros que refletem formas celestiais em um círculo sem fim, eterno retorno não desapercebido ao olhar de Narciso. Transmutação de tudo em tudo. Na viva narrativa leminskiana, o mito é imagem de trocas perpétuas. Narciso “começa a sofrer”. Desejo, im-potência diante da sede de “quem nunca toca a água”; a mesma sede de Sísifo e Tântalo, “a eterna sede da imagem que nunca consegue senão se transformar em imagem” (Leminski, 1998, p.19). Sob o signo da “sede”, a metaformose anuncia a “sombra” daquela que porta cabelos de serpentes e que transforma tudo em pedra: Medusa. Nem os deuses escapam da sua petrificação. Mais uma vez ecoa na narrativa a sentença: “feliz enquanto não enxergar seu próprio rosto” (Leminski, 1998, p.19). O poeta grita pela boca pítia palavras de Apolo: “todo diverso em idêntico se converta, toda diferença consigo mesma coincida” ( Leminski, 1998, p. 19). Surge o deus, arqueiro implacável, que não é só medida, mas trans-formação e, como se não bastasse, aparece Eros com suas traquinagens misturando tudo e tornando a razão, Atena, em “uma dor de cabeça de Zeus” (Leminski, 1998, p. 20). Histórias contando histórias, Sísifo, Narciso, Dédalo, Ícaro, Teseu, Medusa, personagens de um “drama terrestre”: “nada é real, nada é apenas isso, tudo é transformação” (Leminski, 1998, p. 21). Quem duvida? o cético duvida de tudo? E quem acredita em tudo que é possível, o que seria? Pergunta oracular sem resposta dada. No princípio eram fábulas, depois vieram os fatos explicados pelas fábulas. Cosmopoesia que transforma uma esfinge, uma quimera em banalidades diante de um “pai que mata o filho e serve sua carne ao Pai dos Deuses” (Leminski, 1998, p.21). Tântalo, rei da Frígia, comete a hýbris de querer transformar-se no impossível. Narciso, Tântalo, Sísifo são nomes que ecoam e constituem o enredo em que só o ser é inexplicável, no entanto, a transformação exige explicação. Édipo enfrenta a Esfinge, “monstro interrogador”. Édipo, o “primeiro filósofo, o ser questionário” (Leminski, 1998, p. 22). A Moira conduz Édipo e a fábula nos faz “pensar o impensável” (Leminski, 1998, p. 23). Leminiski, mergulhado na água da poesia, movido pela beleza que ecoa dos gregos, enxerga com olhos húmidos, histórias que se contam entre si: “A fábula do Minotauro narra a saga de Perseu para um público de Medusa” (Leminski, 1998, p.23). Diante da sentença de Sófocles de que: o homem é uma sombra (skiá),
Leminski afirma: “os homens, são apenas os órgãos sexuais das fábulas” e sentencia: “no ato de ouvir e contar histórias reside a razão de uma vida” (Leminski, 1998, p.23). Vida que conta vidas, contos que aumentam pontos, articulações imprevistas, detalhes novos, como agora, trinta e sete anos depois dessa viagem leminskiana pelo imaginário grego ter sido escrita, eu reconto enquanto vejo Narcisos, Medusas, Ícaros, Tântalos, Délados, Sísifos, sobrevoando esse artigo: “Narro, logo existo”. Existo porque navego em naus e sou atingido, na cabeça, por um raio de Zeus. Como Heródoto que depois de vagar, por amor às histórias, não encontra a unidade e sim a dispersão. “Fábulas não têm centro, são entrópicas, auto-proliferando-se, alimentando-se do cadáver putrefato das fábulas já esquecidas” (Leminski, 1998, p.24). Como matar alguém que não se pode ver? Medusa é portadora de uma verdade abissal: “a multiplicidade do real, a igual probabilidade dos eventos impossíveis, a eterna troca de tudo em tudo, a única realidade absoluta” (Leminski, 1998, p.25). Tudo pode ser metáfora de alguma outra coisa ou de coisa alguma, ou seja, tudo irremediavelmente metamorfose (Leminski, 1998, p.25). Narciso olha para água e vê o céu. O centro está em tudo ou em qualquer parte. “Era uma vez. Assim seja. Estava escrito. Amém.” (Leminski, 1998, p.27). Em uma passagem, quase professoral, o poeta nos lembra uma certa teoria: “o mito é fundador do rito” (Leminski, 1998, p. 27). O sagrado é fruto do rito que celebra objetos, animais, plantas, deuses e as fábulas são espelhos de nós mesmos: existe alguém mais “Narciso do que eu, eu, eu?” Não é por casualidade que temos três vezes eu, ego, ego, ego. Frente ao apelo de Hércules para ser queimado em uma pira, o bandido que sabia latim transversaliza narrativas e diz: “Perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Em tuas mãos, meu pai, entrego o meu espírito”. No final grego, Zeus intervém imortalizando o herói. É curioso observar, nessa metaformose leminskiana, a intertextualidade entre o imaginário grego é cristão. Além de algumas frases, já citadas aqui, outras ilustram bem o exercício criativo do poeta como, por exemplo, ao associar Medusa a Yahweh: “ninguém vê meu rosto e continua vivo, diz o Senhor, diz a Medusa” (Leminski, 1998, p.31).
O mais aterrorizante, segundo Leminski, é que tudo que as fábulas trazem já aconteceu, mas com um detalhe: permanece o prazer de fabular. Assim como alguns poetas místicos, ao narrar suas aventuras, subidas em montes, lutas, sofrimentos e êxtases, Leminski usa uma expressão, que aparece de Platão a Juan de la Cruz, para se referir ao objeto de seu amor: “o amador na coisa amada” (Leminski, 1998,p.32). No caso de Leminski, é Narciso aquele que ama, não a outro ou ao Outro, mas a si mesmo e, por isso, perde-se na loucura de sua própria imagem: “Quem os deuses querem enlouquecer, jogam-lhe um espelho na frente da cara” (Leminski, 1998, p.33). Como permanecer vivo ao ver-se a si mesmo? “Eu me amo, eu não sei viver sem mim”. Como uma esfinge, indaga o poeta-zen-mongista na cruz do Pilarzinho em Curitiba: “Em que vou me transformar, no final? Quem acertar, ganha o direito de olhar bem nos olhos da Medusa. Não é uma beleza?” (Leminski, 1998, p. 34). Finalmente, nessa viagem pelo imaginário grego, Leminski nos apresenta a mandinga de um logos que é senhor, não porque ordena, e sim porque esquiva-se, continuamente, em um jogo no qual o que se mostra e o que escapa nos atravessam convidando-nos a um mergulho no coração da criação poética e, quem sabe, de nós mesmos.
12 de abril de 2023
07 de abril de 2023
07 de abril de 2023
28 de junho de 2022
16 de junho de 2022
20 de fevereiro de 2022
20 de fevereiro de 2022
20 de fevereiro de 2022
04 de junho de 2023
15 de setembro de 2022