Escritor aborda questões familiares em novoromance "A finitude das coisas"

Reportagens

Nélio Silzantov “Precisamos abandonar a velha torre de marfim para democratizar o acesso"

Editor do Ágora, plataforma que divulga a literatura brasileira, o crítico e escritor fala sobre livros e o quanto eles tem a nos ensinar

02 de janeiro de 2024

Cefas Carvalho

Escritor, crítico literário e professor, Nélio Silzantov é natural de Vitória da Conquista, Bahia. Licenciado em Filosofia pela UESB, Mestre em Estudos de Literatura pelo PPGLit/UFSCar, e doutorando em Educação pelo PPGE/UFSCar. É editor da Ágora Literária e autor do romance "Desumanizados" (2020), do livro de de contos "BR2466 ou a pátria que os pariu" (2022), que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2023 e está no processo de lançamento do romance "A finitude das coisas". Nesta entrevista falou de sua obra e de mercado editorial, papel social do autor, internet e muito mais. Confira:

Você é professor e licenciado em Filosofia. Como essas formações afetam sua literatura e sua maneira de ver o mundo?

As profissões extraliterárias proporcionam experiências que podem ou não auxiliar na composição das narrativas que tecemos, ou nos proporcionar situações e reflexões que, de outro modo, não seriam possíveis ou tão fáceis de vivenciar. O caso da minha graduação em Filosofia e do exercício docente não difere disso, sobretudo no que diz respeito à reflexão sobre a palavra e as formas de expressá-las. Gosto de problematizar as palavras e os modos de dizê-las não apenas por meio de um viés filosófico e demais áreas de conhecimento, mas também por meio da oralidade, da palavra cotidianamente dita. Ao menos é o que tento fazer em minha literatura, amplificar as possibilidades de comunicação e compreensão sobre tudo aquilo que nos cerca e sobre nós mesmos.

 

Você é editor da Ágora Literária, criada em 2018 como blog, que hoje expandiu para plataformas e redes e divulga a produção literária atual. Como vê esse projeto?

É um projeto um tanto quanto minúsculo, se observarmos apenas as questões numéricas que a lógica dos algoritmos e a internet como um todo costumam valorar o que fazemos nela. Mas tanto este projeto, como inúmeros outros que não contam com um público mais expressivo, inclusive sem nenhum tipo de apoio financeiro, considero extremamente relevante, porque é na maioria deles que se encontram as obras dos escritores iniciantes, dos que não estão no mainstream literário, das pequenas e médias editoras. Ou seja, é justamente aí onde temos a possibilidade de encontrar o diferencial ou o que foge do sistema mercadológico das grandes editoras. É um trabalho sério, que demanda muito esforço e alguns sacrifícios, e que assim como a Ágora, alguns são tocados por escritoras e escritores que estão mais interessados em compartilhar suas leituras e acompanhar de perto a face underground da cena literária nacional, por assim dizer.

 

Em 2020 você publicou o elogiado romance "Desumanizados". Como foi o processo desse livro e qual sua visão sobre ele atualmente?

De modo geral, os livros sempre têm muito a nos ensinar durante o processo de escrita e reescrita, visto que o aprendizado é uma questão inerente ao próprio ofício. Acho que o primeiro livro publicado (o que nem sempre corresponde ao primeiro que escrevemos) é aquele que fundamenta as bases da nossa formação como escritor. Ou seja, é aquele que nos impulsiona a dar alguns passos além da própria escrita. Não resta dúvidas que, até o momento, Desumanizados foi o trabalho que demandou mais tempo e fôlego.

Comecei a escrevê-lo em 2014 e até a sua publicação em 2020 a narrativa passou por várias modificações até chegar na versão final. Decidir-se quando a escrita de um livro chega ao fim talvez seja uma das maiores angústias do escritor. No final, a dúvida se resume nisso: uma decisão a ser tomada. Alguns escritores são vencidos pelo cansaço, outros pela impossibilidade de seguir além do ponto em que se encontra, pouquíssimos, creio eu, encerram a escrita satisfeitos por chegar ao ponto que tanto desejavam. Outra questão que os livros nos ensinam (ou deveríamos aprender com eles) é exercitar o olhar crítico sobre o próprio texto. Isso é fundamental! Ainda que o autor seja muito suspeito em avaliar a própria obra. No caso de Desumanizados, encará-lo como a obra que trilhou meu caminho e me indicou algumas possibilidades na construção do meu estilo talvez seja a melhor visão que posso ter.

 

Com o livro de contos "Br2466: ou a pátria que os pariu" (pela Editora Penalux) você ficou entre os finalistas do 65º Prêmio Jabuti, o mais importante do país, este ano. Como foi esse processo e qual sua percepção sobre premiações literárias?

Eu não tinha planos de publicar um livro de contos tão cedo, e quando pensava na recepção de uma obra como esta, nunca nutri grandes expectativas. Mas lembro de sentir um desejo intenso de publicá-los depois de finalizar os contos e olhar para o conjunto, mesmo se tratando de uma obra antiestética, ruidosa, anarcopunk, de linguagem desagradável para gostos refinados e conservadores, como destaquei no texto de abertura e alguns feedbacks que recebi atestaram. Posso estar equivocado, como estive em relação à sorte do livro num prêmio literário tão renomado como o Jabuti, mas não considero BR o tipo de livro que cairia facilmente nas graças do grande público leitor, mesmo se tivesse recebido algum prêmio. Isto é, não o vejo como um livro comercial, assim como não vejo os outros textos de minha autoria. Eduardo Lacerda costuma dizer que um prêmio não define a qualidade de um livro, mas abre alguns caminhos para encontrarmos novos leitores e leitoras, ou até influenciar na própria inserção ou consolidação de um autor no meio literário. Pode ser também que nada extraordinário aconteça além da própria indicação. Ainda assim, vejo com bons olhos a existência dos prêmios literários. Em alguma medida, eles atendem à fala de Gilberto Gil, colocando a Literatura na ordem do dia a dia, mobilizando debates, entrando na pauta dos telejornais e sites de notícias etc.

 

Você está lançando seu novo romance "A finitude das coisas", (Editora Patuá), que é definido por Bruna Oliveira como "uma obra que não é para aqueles que temem testemunhar a podridão que há na tríade Família, pátria e religião”. Como foi escrever esse livro e qual sua expectativa com ele?

Ser lido é o que dá sentido ao que fazemos. Espero que A finitude das coisas tenha uma boa trajetória e possa aumentar o número de leitores interessados em meu trabalho. O processo de escrita desse livro me proporcionou novas experiências em termos de pesquisa histórica e de labor com a escrita literária. Gosto muito de explorar as possibilidades narrativas, ir além das formas, das normas do gênero e dos estilos. Neste sentido, não há como não nutrir o anseio de ver isso apreciado pelos leitores que me acompanham. O desejo é que todos tenham sempre uma boa experiência, como costumo desejar nas dedicatórias. Tenho recebido algumas considerações bastante positivas, assim como as primeiras impressões de alguns leitores. É sempre uma incógnita, e apesar do empenho em ver o livro circulando e conquistando novos leitores, eu prefiro equilibrar meu foco entre as ações da pós-publicação e o próximo projeto.

Acredita que o escritor tem um papel social a cumprir?

Não vejo como um dever, mas, enquanto postura pessoal, ou atividades relacionadas ao ofício literário que vão além da escrita e publicação de um livro, talvez engajar-se de algum modo na promoção da literatura para além da autopromoção seja algo interessante a ser exercido. Abandonar a velha torre de marfim em busca de meios de fortalecer e democratizar o acesso à literatura. Em termos de produção literária, esse é um tema que traz consigo o seu oposto, a ideia de arte pela arte e suas questões estéticas. Não vejo esse papel como um dever a ser cumprido. É uma questão muito mais pessoal do que um imperativo categórico, cuja adesão e compromisso varia de escritor para escritor. Acho que, de certo modo, todos acabam exercendo esse papel. Principalmente o de pensar a sociedade ou a condição humana. Mas há outros papéis sociais e posturas estéticas. Como dito, isso cabe a cada um, e se a pessoa considera suficiente para a história da literatura e acha que já faz um bem imenso à sociedade apenas escrever, publicar e falar da própria obra, quem poderá dizer o contrário?

 

Qual sua análise sobre o mercado editorial atualmente e como observa o crescimento das editoras de pequeno e médio porte e/ou independentes?

Responder essa questão daria meia dúzia de teses de doutorado. Se por um lado há, de fato, um crescimento significativo de pequenas e médias editoras, por outro, a sobrevivência da maioria delas, ou até mesmo a circulação da produção literária ainda é uma das questões mais urgentes a serem resolvidas, alguns diriam até insolúveis. O fato é que, não fosse pelas editoras independentes como a Penalux e a Patuá, por exemplo, dificilmente a maioria das escritoras e escritores iniciantes conseguiria ser publicada. Sem vontade política, sem uma ação séria do governo para resolver as crises do setor e atuar firmemente na construção de uma sociedade leitora, a única mudança possível é daqui para pior. Algumas pesquisas recentes sobre livros, leituras e bibliotecas no país ilustram bem o preocupante cenário em que nos encontramos.

 

Como vê a interação entre escritores de regiões diferentes do país em um mundo cada vez mais globalizado e conectado pela internet? Na mesma pergunta: considera que é lido por leitores/leitoras de estados e regiões diferentes? Observa alguma barreira regional?

Vejo como uma grande cena da literatura nacional. É mais do que necessário esse tipo de interação, não só pela oportunidade que temos de acompanhar o que vem sendo produzido na contemporaneidade, mas especialmente de conhecer pessoas, estabelecer parcerias e vínculos afetivos. Curiosamente, sou mais lido ou conhecido fora de casa do que em meu próprio estado, e há pouco tempo, sequer conhecido pelos escritores de minha própria cidade. E neste caso, a inexistência de uma cena local corroborava muito. Via de regra, o fato de ser do interior invisibiliza bastante, não só em relação à cena literária dos grandes centros urbanos (que naturalmente fixam os olhos no próprio umbigo), mas até em relação aos demais interiores, aos rincões do país. A internet ameniza isso, mas há também muitas bolhas e não raro é perceber o anonimato de alguns escritores que jurávamos desfrutar de uma certa notoriedade.