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O Caseiro do patrão

José era mil e uma utilidades, pintava parede, arrumava o jardim, dava banho nos cachorros, limpava a piscina, claro, tudo isso calado

26 de junho de 2021

Abraão Gustavo, escritor

Em uma casa de muitos quartos e uma piscina enorme, morava o banqueiro Marcelo Bittencourt e sua esposa Regina. Ela era o pesadelo da vida dos seus empregados. Vivia no século XXI, porém, acho que esqueceram de avisar para ela que a escravidão havia sido abolida do Brasil. A mulher era tão ruim que a maioria de seus empregados e funcionários que não haviam suportado seus infortúnios e suas exigências pediram as contas. Os únicos que suportaram foram José Calado e Clarinha da Conceição.

Dois passadores de fome que vieram do sertão para tentar a vida na cidade grande e acabaram se infiltrando, por meio das habilidades de faz tudo de José Calado, na casa dos Bittencourt. José era mil e uma utilidades, pintava parede, arrumava o jardim, dava banho nos cachorros, limpava a piscina, claro, tudo isso calado. José tinha o rosto marcado com os estigmas do sofrimento sertanejo, uma esclerite eterna nos olhos, uma pele envelhecida pelo sol escaldante e um sorriso sempre tímido amarelo. E seu patrão sempre o cumprimentava com o ar de riso:

– Esse é o melhor funcionário que eu já tive! Não fala, não morde. Cabra bom!

Conceição virou doméstica da casa, fazia de tudo também, desde varrer e passar pano até limpar mijo de criança em lençol. Uma vez ela até trocou a fralda cagada de Marcelo Bittencourt Júnior. Aquela rotina de abusos e miséria se estendia há anos. Salários baixos, direitos e férias nem pensar. E “muito trabalho e pouca diversão, faz de você um bobão”, como já diz o ditado. 

Os Bittencourt estavam sempre viajando pela Europa, passavam dias fazendo tour, era o tempo de sossego e de paz de José e Conceição. Quando os patrões estavam viajando, a farra começava. Conceição pegava sempre os melhores vestidos de sua patroa e desfilava na casa de salto alto. José aproveitava para pular na cama do patrão. Dormir e comer como se fossem os donos do pedaço. Dormiam até meio dia, bebiam e comiam tudo que estava nos armários. Teve um dia que deram até um churrasco para moradores de rua, utilizaram a piscina da casa. O entregador de pizza já sabia. E quando fazia entrega sempre dizia:

– Dona Conceição ou patrão José falante está aí?

Mas alegria de pobre dura pouco, e logo o emprego da vida daqueles dois miseráveis chegaria ao final. Quando os patrões voltavam sempre notavam que coisas estavam sumindo, roupas caras, garrafas de bebidas, frutas e legumes estavam sempre em falta. 
Na última viagem que fizeram, Conceição fez um sopão para os desabrigados dentro da casa. 
Mas os infelizes não sabiam a função das câmeras.