No túmulo de Pablo Neruda, em Isla Negra/Chile, 2010
Colunas
As palavras entoadas por Neruda se misturavam aos barulhos da ventania vespertina, trazendo uma espécie de canção cheia de força e calor
04 de março de 2021
Lívio Oliveira
O caderno até parece ter outra cor. E isso também não é importante. Vou preenchendo espaços, lançando palavras por sobre as linhas, à mão, sem parar pra pensar muito. O lápis agora desliza afoito e sinto que há um peso extravagante surgindo do pulso. As marcas no papel escurecem. Emerge um traço entortando de melancolia. Talvez se associando ao cinza daquelas nuvens que desmancham e ocultam vagarosamente a imagem anterior da Ponte Newton Navarro, até poucos minutos bem visível, através da janela translúcida que se projeta para o leste.
Os pensamentos ingressam num turbilhão frenético, enquanto busco lembrar uma cena vivida em Isla Negra, em visita a uma das três celebradas casas de Pablo Neruda. Ali, impressionava-me com a beleza do Pacífico, quase que ouvindo a voz ancestral do grande poeta, apaixonado diante do mar. Acreditava mesmo que a ouvia.
As palavras entoadas por Neruda se misturavam aos barulhos da ventania vespertina, trazendo uma espécie de canção cheia de força e calor. Eu podia mesmo vê-lo e ouvi-lo sentado numa grande e lisa pedra, mirando o horizonte, emitindo poemas como se fossem orações ou cantos gregorianos. Havia um envolvimento amoroso entre Neruda e o universo. Havia um diálogo sereno e sagrado. E eu era testemunha e partícipe disso, um voyeur, quase um intruso, porém aceito e acolhido.
Então me dou conta que a cena que procuro nos escaninhos do cérebro não é essa. Na verdade, a mente ingressara em devaneios, talvez para que o encontro com o poeta se desse com mais intensidade, não somente a partir dos seus objetos e lugares visitados. Os pensamentos à deriva haviam emprestado mais beleza ao encontro. O sonho se instalara. E eu esperava que ficasse e se firmasse, definitivamente, impregnando a alma de sensações exuberantes e exógenas, numa construção surreal de prazer e encanto.
Uma pausa. Um suspiro. Retomo o olhar e o devolvo ao horizonte em que a ponte com nome de poetartista reaparece pós-nuvens. Novamente, parece que os delírios semi-febris me colocam num mundo alheio, com cores e sons saídos dos quadros de Marcellus Bob e dos discos de Thelonious Monk. Também sou remetido à “História da Beleza”, obra de Umberto Eco, onde o agora saudoso intelectual estabelece sentidos e entendimentos sobre a matéria. E me permito essa viagem, sozinho, no apartamento ilhado, exílio dos tempos que experimento toda voz, toda vez que ingresso no mundo particular da leitura e da escrita. As palavras se transformam em pensamentos que se desdobram em realidades aparentes. E novamente me surgem os devaneios e os temas idílicos.
É aí que, desta feita fixando os olhos no horizonte do Atlântico, chego a imaginar que Zila Mamede retornava de seus exercícios de natação, caminhando sobre os arrecifes negros, circunvizinhança da Fortaleza dos Reis Magos, sorridente e plena, trazendo-nos novos poemas marítimos para um tempo amadurecido de poesia, aqui e no mundo todo. Zila, nessa cena, enxugava-se com uma toalha branquinha e macia, contando novidades sobre o espaço onírico das palavras e dos livros. Enredava esperanças. Nutria certezas sobre o encontro entre as belezas poética e as da realidade, superação de feiúras, degradações e corrupções humanas. Enquanto eu seguia ouvindo a criadora de “Navegos” o meu pensamento continuava à deriva, levando-me a enlevos que fortaleciam o meu desejo e a minha fé na poesia, salvando-me da cena real e dura lá fora, lá embaixo.
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P.S. A foto é no túmulo de Pablo Neruda, em Isla Negra/Chile, 2010.
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