“Os violeiros”, xilogravura do artista pernambucano Marcelo Soares.

Colunas

O poder da síntese da poesia nordestina

Com apenas uma estrofe o poeta situa a história, transmite o clima de aventura e perigo e introduz o conflito da trama

19 de maio de 2022

Clotilde Tavares

Uma coisa que sempre me surpreende na poesia popular nordestina é a capacidade de síntese dos poetas. Em poucas palavras, arrumadas em um estrofe de seis linhas conhecida como sextilha, o poeta consegue expressar de forma completa um pensamento, um sentimento, uma ideia ou até mesmo resumir uma história.

Veja, por exemplo, a primeira estrofe do folheto de cordel “O Pavão Misterioso”, da autoria de José Camelo de Melo Rezende, folheto esse que deve ter sido publicado nas primeiras décadas do século XX:

“Eu vou contar a história

De um pavão misterioso

Que levantou voo da Grécia

Com um rapaz corajoso

Raptando uma Condessa

Filha de um conde orgulhoso…”

 

Apenas com uma estrofe o poeta situa a história, transmite o clima de aventura e perigo e introduz o conflito da trama, que se estabelece entre o rapaz e o conde, em disputa pelo amor da Condessa; de quebra, caracteriza os personagens, atribuindo coragem ao rapaz, orgulho ao conde e beleza à tal condessa, é claro, que ninguém vai se dar ao trabalho de raptar mulher feia.

Quer outro exemplo? Pergunte a qualquer pessoa quais são as três piores coisas do mundo, e peça para explicar o por quê. Nove entre dez mortais vão passar uma hora explicando e gastando palavras. O poeta não. Veja essa décima (estrofe de dez linhas) atribuída ao poeta Louro Branco que responde à sua pergunta:

 

“Um grande sábio profundo

Me perguntou certa vez

Se eu conhecia as três

Piores coisas do mundo

Lhe respondi num segundo

E lhe dei explicação:

- Doido, mulher e ladrão.

Doido não tem paciência

Ladrão não tem consciência

E mulher não tem coração.”

 

Sintético, enxuto, exato, na medida. Uma estrofe perfeita.

Outra da qual gosto muito é uma sextilha atribuída ao poeta pernambucano Antonio Marinho, sogro do não menos famoso vate Lourival Batista, dos Batistas de São José do Egito. Sobre a saudade, fala Antonio Marinho:

“Quem quiser plantar saudade

Escalde bem a semente

Plante num lugar bem seco

Quando o sol tiver bem quente

Pois se plantar no molhado

Ela cresce e mata a gente.”

 

A quem estiver estranhando essa coisa de “atribuído a…” explico que na poesia popular essa questão de autoria é assim mesmo meio nebulosa, meio confusa, meio incerta. Para não errar, prefiro dizer que o verso é “atribuído a” do que fechar questão quanto ao autor.

Outro primor da síntese é uma estrofe que escutei por aí, da qual não sei o criador:

“O baralho tem quatro ás

Quatro dois e quatro três

Quatro quatro e quatro cinco

Quatro nove e quatro seis

Quatro oito e quatro sete

Quatro dez, quatro valete

Quatro dama e quatro reis.”

 

Não poderia concluir este registro sem falar em Rosil Cavalcanti, compositor genial de obras musicais como “Sebastiana”, “Tropeiros da Borborema”, e tantas outras. Basta dizer que Rosil foi aceito na Academia de Letras de Campina Grande apenas pelas suas letras, apenas pelas suas composições, sem nunca haver escrito um livro. A cadeira do qual foi patrono e fundador foi depois ocupada por meu pai, o jornalista e poeta Nilo Tavares, coisa que deixou nossa família muito feliz. Rosil Cavalcanti é o autor de “Moxotó”, cuja letra é um verdadeiro estudo sociológico da região que ele descreve na canção, com todas as suas características geográficas, econômicas, antropológicas e sociais:

“Você precisa conhecer uma terra boa

Você precisa conhecer o Moxotó

Pra ver o cabra entrar no mato encourado

Derrubar touro montado

Pegar cobra e dar um nó.

Lá tem vaqueiro que emborca no carquejo

Quebrando arapiraca

Tem sim senhor

Tem caçador que pega onça de mão

E sangra de faca

Tem sim senhor

Tem fazendeiro que morre e não sabe

Quantas reses tem

E tem morena de fala doce e amena

Que em outra terra não tem

Isso também tem…”

Oitenta palavras e toda a região passa como um filme, à sua frente! Genial.

Este texto foi publicado no meu livro Notícias da Existência do Mundo (Natal, Escribas,2017. p.35)


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