Manifesto Comunista / José Correia Torres Neto

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O que é queimar, do figurativo ao literal

A queima de livros é representada quando se ouve que neles há “muita coisa escrita”.

03 de agosto de 2020

Quando se fala em queimar livros, imagina-se um fogo devastando uma pilha de centenas deles, além de alguns civis e homens fardados alimentando as chamas com tantos outros livros, como se registra na fotografia da Praça da Ópera em Berlim, na Alemanha, no dia 10 de maio de 1933, onde milhares de livros “não alemães” foram destruídos. O preto e branco daquela fotografia deixa uma mensagem em vivas cores sobre como um gesto daquela natureza pode ser perpetuado sem levantar nenhum vestígio de fumaça nem de fogo.

George Steiner, em Aqueles que queimam livros (Âyiné, 2017), logo na primeira linha da primeira página, afirma que “Aqueles que queimam livros, que batem e matam poetas, sabem exatamente o que fazem”. E é, sem riscar um único palito de fósforo, que, na atualidade, são queimados centenas de milhares de livros cotidianamente.

Esse queimar de livros se inicia em alguns atos articulados minuciosamente, outros nem tantos, como de improviso, mas que passam despercebidos, com um simbolismo forte e apavorante. A queima de livros é representada quando se ouve que neles há “muita coisa escrita”, quando o erro e a ignorância são elementos constitutivos de um ministro de Estado, quando a mentira gourmetizada se espalha nas diversas redes de comunicação e é tomada como uma sólida verdade, ou quando são extintos o fomento para a produção cultural de um país, ou isso tudo quase de uma vez só – passaríamos longos momentos relacionando as formas de como se queimam livros na atualidade.

Queimar livros, não no sentido conotativo, representa destruir o que foi erguido pelo trabalho da sociedade sem ideia nem expectativa do que poderá ser erguido posteriormente; representa colocar um país e o seu povo abaixo da condição humana e os interesses degenerados e desonestos de um pequeno grupo como o único propósito do seu representante máximo.

Desses rolos de fumaça virtual, que ofuscam as visões de muitos, é que surgem os resultados: segmentos sociais ameaçados; a desvalorização do trabalho; o menosprezo da ciência pelo sobrepujamento de boatos e balelas; o controle de uma sociedade por um déspota; a morte como um fato costumeiro, banal; e a lei deixando de ser um elemento imprescindível.

O que esses incendiários desconhecem, por ignorância congênita, é que a subversão é a fibra que se entrelaça e fortalece o papel, e que o pensamento progressista é a borra viva, aguçada e escura que os tinge. Contudo, tenhamos cuidado porque quem queima livros não poupará esforços para queimar índios, negros, mulheres, LGBTQIA+, professores, estudantes e trabalhadores no amplo sentido denotativo.

 

PARA NÃO CAIR NO ESQUECIMENTO:

“Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos não existe à toa. Ela é parte do esforço preventivo que veio a partir do exato momento em que descobrimos que somos capazes de nos destruir por completo. Nesse sentido, o documento pode ser uma das coisas mais inteligentes que nós, como espécie, fizemos por nós mesmo. Tudo o que nos separa da autodestruição é o frágil consenso de que gente merece ser tratada como gente.” (BRASIL, Meteoro. Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019).