Capa do disco Paraíso, Belchior, 1982. Crédito da fotografia: José Correia Torres Neto

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O que se tem de livro nas músicas de Belchior e o que se tem de Belchior e suas músicas em livros

Aquele que ouve Belchior pela primeira vez se sente em meio a um quebra-cabeça textual

08 de setembro de 2020

José Correia Torres Neto | Mestre em Engenharia Mecânica e Editor de Publicações

Foi no palco do Teatro Alberto Maranhão, acredito que no final dos anos 1980, que conheci a música de Belchior por ele mesmo. Um cabelo esvoaçante, camisa em mangas longas, colete, banda extremamente em harmonia, bigodes cobrindo-lhes a boca: tudo aquilo chamava a minha atenção. Paralelas, Rapaz latino-americano e A palo seco se misturaram com outras canções que me faziam arregalar os olhos.

Depois de vários vinis comprados em sebos e alguns CD em lojas de departamentos e de ir a tantos outros shows, tive a ousadia de conversar com ele no camarim do teatro do Centro de Convenções, antes de uma de suas apresentações. Perguntou o meu nome e, durante os dez minutos de conversa, tratou-me por José. Ainda lembro do seu olhar profundo, sua voz grave e seu sorriso arqueado sob o vasto bigode. Aquele dia sobrevive em minhas lembranças na fotografia dependurada em uma das paredes da minha sala de visitas.

Deixando as reminiscências de lado e observando a musicalidade e a poética desse cearense, percebe-se a certeza de que a sua formação intelectual e seu conhecimento literário foram a sustentação para produzir sua bela e preciosa obra. Aquele que ouve Belchior pela primeira vez se sente em meio a um quebra-cabeça textual. A voz anasalada, que vez por outra declama ou debochadamente fala a letra da música, joga nas nossas cabeças as ironias e as verdades sobre a vida, a morte e o amor. O texto construído como em um rompante de verdades traz inúmeras referências que ora nos surpreende, ora nos deixa angustiados por não saber de onde vêm.

O universo daquele que se dedicou à caligrafia, às artes e, principalmente, à palavra cantada – expressão que sempre usava em seus shows para referenciar a sua obra musical – alude ao melhor que existe na literatura. A pesquisadora Josely Teixeira Carlos, em sua dissertação Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior (2007), analisa detalhadamente e sistematiza os elementos dialógicos entre o cancioneiro e as várias obras literárias presentes em sua construção poética.

João Cabral de Melo Neto, Álvares de Azevedo, Camilo Castelo Branco, Afonso Arinos, Euclides da Cunha, Olavo Bilac, além de Fernando Pessoa, Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, Eduardo Galeano, Bob Dylan, Beatles entre outros, como apresenta a pesquisadora em sua dissertação, espalham-se nas letras das músicas de Belchior figurados em trechos, citações ou em uma outra palavra que remete a uma obra ou ao próprio autor.

Josely Teixeira Carlos, em 2014, defende a tese Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior. Seu trabalho com 691 páginas analisa “[…] os processos polêmicos de construção identitária do sujeito discursivo revelados nas canções de Belchior, em diálogo com outras produções musicais brasileiras, mais especificamente com a obra dos compositores Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil” (CARLOS, 2014).

Raul Furiatti Moreira, na sua dissertação Um sem-lugar em Belchior: a escuta de Alucinação (2015), destaca o disco Alucinação, lançado em 1976, analisa as composições de Belchior e constrói uma análise sobre dialética, identidade e realidade.

A pesquisa sobre a obra e o pensamento de Belchior também está presente em vários artigos acadêmicos e quando se buscam os livros publicados sobre Belchior, ou sobre as suas canções, encontram-se os títulos: A felicidade é uma arma quente!, de Thiago Gonzaga (CJA, Natal 2013); Para Belchior com amor, organizado por Ricardo Kelmer (Expressão Gráfica e Editora, 2016); Alguns pré-textos nas canções de Belchior, de Eder Deivid (Giostri Editora, 2017); Belchior: apenas um rapaz latino americano, de Jotabê Medeiros (Todavia, 2017); Belchior: a história que a biografia não vai contar, de Jorge Claudio de Almeida Cabral (Edição do autor, 2017); e Cancioneiro Belchior, de José Gomes Neto (Edição do autor, 2018).

A obra de um dos maiores nomes da música popular brasileira é preciosa, rica em referenciais e, como estamos vendo e vivenciando, atemporal, e será lembrada, celebrada, cantada e estudada eternamente: uma “[...] dançarina de pedra que evolui / Completamente sem metas, sentado [...]”.

 

PARA NÃO CAIR NO ESQUECIMENTO:

“Essa suspensão, essa sublime hesitação entre o sentido e o som, é a herança poética que o pensamento deve levar até o fim.” (AGAMBEN, Giogio. Ideia de prosa. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012.)

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Jorge Claudio de. Belchior: a história que a biografia não vai contar. Porto Alegre: Edição do autor, 2017.

CARLOS, Josely Teixeira. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior. 2014. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Filologia, Letras e Língua Portuguesa. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

CARLOS, Josely Teixeira. Muito além de apenas um rapaz latino-americano vindo do interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.

DEIVID, Eder. Alguns pré-textos nas canções de Belchior num Brasil ufanista. São Paulo: Giostri Editora, 2017.

GONZAGA, Thiago. A felicidade é uma arma quente! Natal: CJA, 2013.

KELMER, Ricardo (org.). Para Belchior com amor. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016.

MEDEIROS, Jotabê. Belchior: apenas um rapaz latino americano. São Paulo: Todavia, 2017.

MOREIRA, Raul Furiatti. Um sem-lugar em Belchior: a escuta de Alucinação. 2015. Dissertação (Mestre em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2015.

Neto, José Gomes. Cancioneiro Belchior. Florianópolis: Edição do autor, 2018.

YPÊ. Intérprete: Belchior. Compositor: Belchior. In: OBJETO direto. Intérprete: Belchior. São Paulo; WEA, 1 disco vinil, lado A, faixa 4 (3,31 min).