"Um homem só luta em busca dos peixes da imaginação. É uma luta árdua, incompreendida"

Colunas

ONDAS

Em texto poético de Experimento e Verbo, Lívio Oliveira reflete sobre a solidão do homem em seu habitat de sol, areia e mar

04 de fevereiro de 2021

Lívio Oliveira

O TEMPO escorre e desce, formando um caminho molhado ao longo da duna. Pouso o olhar bem longe, na linha em que aparece uma jangada. Um homem só luta em busca dos peixes da imaginação. É uma luta árdua, incompreendida. Muitas vezes volta com as mãos e a mente vazias, queimadas do sol. A vitória salgada nem sempre acontece. 

Ele retorna. 

O olho da montanha de areia continua lá, no horizonte, acompanhando a sina do pescador que brilha sob a luz forte. Um corpo que se move lento, espreitando o cardume que se desloca célere e brincalhão. 

Não se sabe exatamente quem é pescado e quem é pescador. 

Alguma fera de dentes pontiagudos e deslizantes pode surgir na crista do mar e pode tingir de vermelho intenso as madeiras unidas da jangada. O colorido, de repente, é uma alegria diferente que suplanta o dégradé verde-azul. 

O tinto no mar é um sinal de vida. Vida que se alimenta de outra. No alto da duna espessa e branca há outra cor, também a surgir. O sol se abaixa, alaranjado, como se ficasse humilde diante da realidade da noite invadindo o paraíso. 

O homem do tempo muda as luzes dos olhos e beija a lua nova que o conforta. Há algum perfume feminino que passeia entre os coqueiros. Há algum colóquio entre venenos e curas, entre antídotos e dores, entre prazeres e dias e noites que ardem, já sem o pescador que se foi em busca dos outros gozos eternos, aqueles de dentro do escuro infinito do mar.

II

NA NOITE há algo que me atinge durante o sono e o inconsciente em ebulição. Não identifico ao despertar. Somente os suores no corpo e uma imensa sede. Procuro a caneca d’água, que me acolhe e sacia. 

Olho pela janela da casa pequena. Está aberta, ainda em direção ao mar. A escuridão só me permite distinguir uma lanterna e um homem de pé sobre uma embarcação minúscula: uma jangada. Uma espécie de fantasma lá longe. E me traz remorso e culpa. 

Vagueia. Vagueia. Até parece saber o caminho naquela geleia imensa e salgada. 

Olho, então, para baixo. No chão, uma formiga grande e preta sobe no meu pé descalço. Incomoda a picada, mas apenas admiro e chego a rir. 

Olho novamente pela janela da casa de taipa e já não vejo a luz da lanterna, mas o mar continua a rolar e a produzir um som continuo, que me põe em conexão com o passado e com o futuro, até que o dia nasce e descubro que o único momento é o presente, com sol e tarefas, mesmo que mude a cada onda a invadir a casinha, fazendo-a desaparecer aos poucos, comigo suspenso nas águas que sobem ao teto nu, de telhas e paus.

III

A VILA, quase entorpecida, inventou de acordar com o novo sol. Há os poucos transeuntes à beira-mar, à beira-morte, o silêncio somente quebrado pelos urros de Netuno. 

Uns colocam os pés nas espumas que sobram da onda que quebra. Outros se sentam sobre tocos de coqueiro que sobraram das quedas. As palhas recobrem as areias e formam um salão de conversas amenas e inúteis. O calor passeia, guardado das brisas que às vezes dão as caras. 

Aguçar os ouvidos é descobrir que lá no mar alto surgem boas novas: peixes pescados aos montes e gordos.

Há os que se felicitam pelo barco multicolorido que chega, com um nome de santo pintado nas laterais da proa. A carga é boa. 

Há os que lamentam pela jangada que jamais retorna.

O jangadeiro ausente voa feliz e adormece no horizonte entre areia e água.

 

*Lívio Oliveira, escritor e advogado público, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.