Imagem aérea da Ponte de Igapó vai ilustrar capa da "biografia". Foto: Acervo do autor
Reportagens
Engenheiro e pesquisador Manoel Negreiros prepara livro sobre a história da obra memorável construída por brasileiros, ingleses e um francês
27 de julho de 2020
Por Cinthia Lopes | Editora e redatora
Quando a pequena locomotiva Catita cruzou a ponte ferroviária metálica sobre o rio Potengi, em 1916, Luís da Câmara Cascudo era um rapaz de 18 anos. A cidade de Natal, ainda com ares provincianos, tinha uma população em torno de 20 mil habitantes e a zona Norte não devia ter mais de 10 casas, segundo o próprio escreveu à época.
Mas eram os anos 1910, vivia-se um salto tecnológico no campo dos transportes e Natal não ficou de fora desse sopro de crescimento. Assim a Potengi Bridge, ou como conhecemos popularmente a velha ponte de Igapó, foi erguida numa velocidade de fazer inveja a muitas obras arquitetônicas atuais. Bastaram dois anos para a imponente estrutura metálica de grandes treliças transpor o Potengi para se tornar um marco da engenharia até então. Não só pela importância econômica, mas por conjugar uma característica essencial das grandes obras: o compartilhamento de conhecimento e tecnologia.
Pouca gente sabe, mas a ponte foi uma empreitada do engenheiro brasileiro João Júlio Proença, construída pelos ingleses da Cleveland Bridge e projetada por um francês, o engenheiro Georges Imbault. Ou seja, um visionário chegou por aqui vindo de Minas Gerais para investir na região, elaborou um projeto detalhado, foi buscar dinheiro no governo e tecnologia lá fora.
Ponte de Igapó nos anos 60, em foto de Jaeci
Se hoje a ponte de ferro é sucata na paisagem, ela foi no passado fundamental para o desenvolvimento da cidade e um modelo da pré-engenharia brasileira que começava a engatinhar. Como se escreveu na época, uma ponte feita para durar. De passagem ferroviária passou a rodoferroviária até ser desmantelada e vendida como ferro-velho nos anos 70, quanto então construíram a outra, de concreto.
Com uma história até então fragmentada, a ponte "perdida" sobre o rio Potengi parecia seguir seu curso de abandono, corrosão e apagamento total se não fosse a curiosidade de um abnegado estudioso no assunto, o engenheiro civil Manoel Fernandes de Negreiros Neto. Coube a ele ir a fundo para escrever o que ele próprio chama de "biografia" sobre a esquecida construção.
“Ponte de Igapó” nem foi lançada ainda mas já levanta questões sobre os motivos que levaram ao abandono da estrutura e sua substituição pela ponte de concreto nos anos 70. O engenheiro Manoel Negreiros começa seu livro mostrando o quanto a ponte de Igapó foi majestosa e funcional nas décadas de 20, 30, 40 até 1970. “Aí houve uma congestão intelectual muito grande dos engenheiros do RN ao decidirem vendê-la como ferro velho”, ironizou. “É uma história triste, mas a minha história sobre a ponte é mostrar sua importância para a cidade”.
Ainda sem data de lançamento, a biografia “Ponte de Igapó” deverá ter em torno de 700 páginas com muitas ilustrações, inclusive detalhes do projeto, edição de Marcelo Mariz e prefácio de Vicente Serejo. “Ainda estou em busca de patrocinadores, pois é um livro grande e custoso”, contou o autor.
A Ponte construída em 1914 e inaugurada em 1916 contou com tecnologia inglesa. Foto: Acervo do autor
A obra trará na capa uma imagem rara: uma foto aérea feita de um ângulo pouco conhecido revela toda a sua imponência. Segundo o autor, a ponte era sonhada e esperada em Natal desde 1830. O Imperador Dom Pedro II fez uma lei e mandou dinheiro para ela ser construída, mas o governador à época, sabendo que não poderia pagar o empréstimo, devolveu o dinheiro. Até que em 1911 apareceu por aqui o João Júlio de Proença, que fez o projeto, o orçamento e subcontratou a empresa inglesa. Negreiros, que chegou a viajar a Darlington, na Inglaterra, para completar sua pesquisa, contou que segundo os técnicos da Cleveland Bridge com os quais conversou, “bastava uma pintura de 20 em 20 anos e ela estaria ali ainda linda.”
A pesquisa
Foi a partir de 1993 que Manoel Negreiros começou a pesquisar informações sobre a estrutura metálica. Primeiro pela curiosidade em entender como na época, sem tecnologia a engenharia brasileira conseguiu homens, máquinas e dinheiro da primeira República para realizar uma obra memorável e durável.
“Fui pesquisar em livros aqui e nada encontrei. Isso me inquietou e vendo o total abandono de uma obra que custou muito dinheiro e vidas, decidi ir atrás de mais informações”, comentou o escritor. Ele conta que sua formação o ajudou, além de ser um apaixonado por máquinas velhas gosta de uma boa investigação. “Sou perito e tenho uma pós-graduação em perícia judicial de engenharia. Como não tinha nada e a curiosidade era grande passei a pesquisar sob todos os ângulos.”
Para Negreiros, foi uma obra e tanto. Por trás de todas as dificuldades, um Brasil sem indústrias de base no cenário das ferrovias e pontes estava um engenheiro determinado. “Seria simplista dizer a ponte dos ingleses quando ela só foi possível por que o Proença tinha esse sonho de construir algo inédito”, comentou em recente entrevista. “Foi também uma obra que libertou a cidade em direção ao noroeste da capital no ano de 1916. Ela tem mais de 100 anos enquanto a engenharia brasileira tem menos tempo.”
Viagem ao berço dos trens
Quando as pesquisas em inglês avançaram, Manoel Negreiros decidiu viajar em busca de documentos. O autor foi à cidade de Darlington para visitar a sede da empresa Cleveland Bridge. “Essa viagem foi muito importante porque lá foi o berço das ferrovias como a de Stoctown to Darlington. Fui a um museu que retrata esse fato. Toda região de Newcastle abaixo no Condado de Duram é berço de trem. Foi lá que foi fabricada a mini locomotiva Carita, que inaugurou a ponte em 1916”. Além da visita a Cleveland Bridge, que até hoje é uma das maiores do mundo no ramo de construções, o engenheiro recebeu do diretor de marketing o livro com a história da empresa onde consta a ponte de Igapó.
“De muito interessante descobri os projetos e o autor. Mas foram muitas descobertas sensacionais. No livro, a nossa ‘Potengi Bridge’ consta como a sexta obra detalhada da empresa.”
O autor também visitou um sebo em busca de um livro raro escrito em 1930 que descreve todas as obras da Cleveland Bridge. Como não encontrou, decidiu deixar o nome com o livreiro. Cinco anos depois, o dono do sebo enviou uma mensagem informando que havia encontrado o livro.
As pesquisas também corrigiram algumas informações erradas que foram publicadas em jornais e propagadas por aí, como o fato da ponte ter sido projetada por Gustave Eiffel, o mesmo da torre de Paris. O engenheiro conversou com o neto de Georges Imbault, o verdadeiro projetista, para ver se existia o projeto em papel, mas só encontrou a descrição da ponte. Foi descrita da seguinte forma:
“Ponte sobre o rio Potengi, perto de Natal, Brasil, construída com nove vãos de 50 metros e 1 de 70 metros. Os cilindros metálicos eram de 20 pés de diâmetro e foram colocados numa profundidade 12 metros após o fundo de rio, afundados utilizando ar comprimido entre 40 e 50 libras...”
Orçamento
Além do know-how dos ingleses, a biografia ressalta a importância do engenheiro mineiro Julio Proença, cuja vida foi fabulosa. Ele foi arrendatário da estrada de ferro central do RN e presidente da companhia de viação e construções. Foi ele quem fez o projeto e o orçamento para a obra e foi em busca de tecnologia, consultoria dos ingleses.
Outras curiosidades é que a princípio a ponte teria vãos de 60 metros e uma ponte girante para não atrapalhar a navegação das embarcações pelo rio Potengi que iam até Macaíba. A ponte girante ficou de fora, muito provavelmente pela falta de verba.
Toda a estrutura foi construída entre 1912 e 1914, mas a inauguração correu somente em 1916 por conta da demora em construir os acessos da Ribeira até a cabeceira da Ponte. “Já naquela época existia a burocracia das desapropriações, igual como vemos hoje”.
O engenheiro e professor Manoel Negreiros pesquisa sobre a ponte desde 1993
Do Rio Grande do Norte, o autor ressalta a participação do então senador Eloy de Souza, que solicitou ao governo um adendo no orçamento para que se construísse a passagem de pedestres. Assim foi feito o passadiço para dar direito as pessoas cruzassem a ponte a pé sem que fosse necessário comprar uma passagem de trem. Eloy voltou a intervir nos anos 60, para que esta obra dos passadiços fosse reformada.
Enquanto o que resta da Ponte de Igapó segue seu processo lento de destruição, o livro dá pano pra manga ao mostrar os erros cometidos pela gestão pública. A empresa que comprou as peças da ponte não conseguiu retirar todas as arcadas e desistiu, sobrando poucos vãos.
Perguntado sobre o que deveria ser feito com a estrutura que resta da Ponte de Igapó, Manoel Negreiros responde que não adianta fazer restaurante no local para ser ponto turístico. Deveriam ser estudadas as fundações e caso estejam intactas, investir na recuperação dos vãos metálicos. “Uma ponte será sempre uma ponte para ligar uma margem a outra, unidos povos e amigos. A Lava Jato bem que poderia impor uma empresa fraudadora a refazer os vãos metálicos”, comentou o engenheiro. Sobre o foco da biografia, ele diz: "O meu sonho é que os engenheiros gostem mas o engenho mental está na mente de cada leitor que verá um Brasil de homens sérios em 1912."
Sobre o autor:
Manoel Fernandes de Negreiros Neto é Engenheiro Civil com Mestrado em Estruturas de Concreto Armado pela UFRN, pós-graduado em Avaliações e Perícias de Engenharia Civil pela FAL e pós-graduado em Gestão de Negócios pela UFRN. Atuou na construção civil por 30 anos, foi vice-diretor do Sinduscon/RN por 12 anos e atualmente é professor concursado do IFRN na cadeira de Gestão da Construção Civil.
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