Farol de Mãe Luiza fotografado por Eduardo Alexandre Garcia
É Típico!
É a madrinha eterna do topônimo. Inútil dar o nome sonoro de um homem deslumbrante. O povo defende o patrimônio humilde de suas preferências
25 de julho de 2020
Em 1969 o escritor e etnógrafo norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo escreveu o livro “Pequeno Manual do Doente Aprendiz: notas e maginações” (Editora UFRN), um diário de memórias no qual relata o período em que esteve enfermo, hospitalizado quase que compulsoriamente pelo médico Onofre Lopes, no hospital que hoje leva o nome do patrono e também primeiro reitor da Universidade Federal do RN.
Como não se contentava em ficar parado, começou a escrever sobre como ele foi parar ali, o cotidiano da cidade e da própria casa de saúde, anotações sobre as visitas de amigos e familiares, a paisagem que avistava de seu quarto e o seu desejo de receber a melhor notícia de todo doente: a ordem do doutor, "vai... pra casa!". Uma das crônicas escritas no “Pequeno Manual” é Mãe Luíza, o bairro e seu farol. Publicamos o texto retirado da edição gentilmente cedida pelo diretor Augusto Lula. Confira:
Erguido 40 metros acima do nível do mar, o Farol de Mãe Luíza é cartão postal do bairro. Foto: Evaldo Gomes
Mãe Luíza
Luís da Câmara Cascudo
“Com as primeiras trevas, o farol de Mãe Luiza lampeja, iniciando a tornejante vigília. “Grande círio velando o cadáver da noite”. Poetou Jaime dos G. Wanderley. A luz intermitente e poderosa, percorre os horizontes escuros, anunciando ao mar inquieto a presença da terra imóvel. A clara verticalidade da tôrre fecha o painel que a minha janela abre sobre a avenida Getúlio Vargas.
Estou, como Paul Verlaine, um peu beaucoup fatigê, moi, confesso. Mas não há fadiga para a imaginação, errante como as derradeiras andorinhas e os primeiros morcegos crepusculares.
Quem foi Mãe Luiza? Uma velha negra ali residente, talvez ex-escrava, anos e anos numa choupana de palha de coqueiros, na encosta silenciosa do morro. Dona do terreno por usucapião maquinal, nenhum documento garantir-lhe-ia a posse, mansa e pacífica, dos pobres metros quadrados residenciais, com galinhas, um pé de manjericão e o cachorro magro, imortal. Mas é a madrinha eterna do topônimo. Inútil dar o nome sonoro de um homem deslumbrante. Ninguém recordará a mudança, sentindo a substancia bajulativa, Será perpetuamente, Mãe Luiza! O povo defende o patrimônio humilde de suas preferências.
Êsse farol foi inaugurado e acesso pelo almirante Harold Ruben Cox em 15 de agôsto de 1951. O engenheiro Gentil Ferreira de Souza (1901 – 1948), seria levado para a iluminação das estrelas antes que o farol rodasse a projeção cintilante. Em setembro viajei em navio para o sul. Deixei o Potengi ao anoitecer. Vi a fidelidade rutilante derramar-se na penumbra atlântica.
Mereceu a dedicação, exigente e tenaz, do comte. Ernesto de Melo Baptista, depois almirante e Ministro da Marinha, natalense da rua de São Tomé, a última guardando denominação do séc. XVIII. Acompanhei nesse farol a lenta ascensão dos seus 37 metros de estrutura. Retribui-me a simpatia, com a visita luminosa ao meu aposento de enfêrmo.
Evoco o farol do Reis Magos, brilho fixo, desde setembro de 1872. Em dezembro de 1907 passou a giratório, sacudindo clarões vermelhos e brancos.
E, assim, Beijos de luz ao longe soltas.
Aumentado a saudade de quem parte.
E extinguindo a saudade de quem volta.
Cantou o des. Antônio Soares. Depois de 1945 voltou à tonalidade única. Em janeiro de 1937 o Rádio-Farol da Limpa, competia. Em 1950 a fortaleza não mais possuía aquela armadura trípode, coroada de luzes circulantes. Mãe Luiza clarearia praia e ondas, guiando as vidas navegantes.
Lembro estórias de farol e faroleiros. A mais sugestiva é a do primeiro farol que houve na Europa.
No princípio do primeiro século antes de Cristo, Ptolomeu Filadelfo, rei do Egito, mandou construir na ilha de Faros, diante de Alexandria, uma coluna de 135 metros de altura em cujo cimo ardia a flama de archotes, guiando a navegação noturna. Daí o vocábulo farol, de Faros.
O arquiteto e planejador, Gnidian Sostrate, gravou no pedestal a placa com o nome do Rei. Antes, no duro granito inicial, esculpira seu nome, oculto pela homenagem ao soberano egípcio. Cada novo Rei impunha nova placa sobre a anterior. O farol de Alexandria era uma das sete maravilhas do Mundo mas o nome do autor coincidia com a do soberano contemporâneo. Em 1302, dez séculos depois da construção, um terremoto abalou Faros e a coluna derruiu, espatifando as placas, votivas e falsas. Surgiu, então, na autenticidade da revelação, o nome do autor, Gnidian Sostrate, que o Tempo custodiara durante mil anos para o momento da incontrastável evidência na voz da rocha inabalável.
Muito farol arde por aí, chamejante e glorioso, com as autorias da convenção no socalco de propaganda. O Tempo e a Verdade podem esperar porque são eternos. Vamos esperar que o Farol se apague e o tempo diga quem fez.
O de Mãe Luiza expõe história honesta e recente. Cito ainda Luís de Camões: “Ah! vãs memórias, onde me levais?
O vento esfriou. Fecho a janela.
– Boa noite, Mãe Luiza! ...
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