Quando o apelido é o protagonista da prosa

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Querido de Deus

A graça da alcunha é sua infalível capacidade de dar o mote para uma boa história

17 de julho de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

Dia desse, conversando com o estofador e meu amigo Márcio, filho de seu Américo, que partiu fora do combinado (como dizia Rolando Boldrin), acertamos, entre uma prosa sobre as curiosidades do futebol e outra sobre a política sergipana, de ele me socorrer com uma pequena ajuda na transferência do sofá da loja para a minha residência. Entre fuleiragens e pechinchas, acertamos o negócio para sexta-feira passada, 12 de julho.

É bom informar que, logo depois, Márcio alterou a prestação do serviço para o sábado, dia do meu tão esperado treino longo na orla. Fiquei muito chateado. O que me fez perguntar, insistentemente, o porquê de ele ter quebrado a promessa de vir na sexta (?), já que ele mesmo sabia (sem exageros!) que no sábado a corrida era o compromisso da minha vida. E quanto mais ele se esquivava, mais eu o colocava nas cordas. Ele, no mínimo envergonhado com o constrangimento, e, talvez, se sentindo ameaçado, apelou e gritou em áudio no whastapp: é porque eu vou estar sem carro, meu querido! Eu pedi desculpas pelo que lhe havia submetido. Mas aquela expressão meu querido ficou grudada no meu quengo.

Lembrei, de pronto, de uma personagem da literatura brasileira, posta em vida pelo escritor Jorge Amado, lotada no romance Capitães de Areia: trata-se do capoeirista respeitado e amado pela turma de Pedro Bala chamado Querido de Deus. Quando li e depois vi e escutei − pois assisti ao filme −, achei aquele nome fantástico: Querido de Deus. Uma sacada especial do autor. E falo aqui em especial e literalmente do nome.

Como em uma cadeia, determinadas situações levam à construção ou à desconstrução de outras, como se fossem elos entreabertos que se encaixam e desencaixam e que formam novas imagens inaugurando outras perspectivas, circunstâncias. Digo isso porque, em outro momento, quando ainda morava em Natal, RN, chamava os meus/minhas amigos/as de Querido/a de Deus. Alguns adoravam. Outros se assustavam e achavam engraçado. E alguns poucos ficavam putos. Esses eram o meu alvo predileto para disseminar o meu particular e irônico projeto de amar ao próximo como a si mesmo. A verdade é que era bom ver a graça dessa alcunha ser distribuída pelas ruas da capital potiguar. Não importava se o/a meu/minha interlocutor/a iria gostar. Eu apenas chamava e pensava: os apelidos ainda rendem boas homenagens.

Depois desse lenga-lenga todo, concluo dizendo que Márcio, honrando a memória de seu Américo, veio e realizou a prestação do socorro da melhor maneira possível. Um misto de qualidade (visto no trato com o móvel que conduzia no carro) e agilidade (no compromisso com o horário acertado). Diante dessa situação, em algum momento levada a extremidade por mim, mais uma vez expressei o meu pedido de desculpa − o que de imediato foi aceito por ele – e terminei reforçando a minha gratidão, só que agora acrescentei uma nova personagem ao meu refrão: muito obrigado, Querido de Deus! Ele olhou de lado e disse: É o cabrunco! Faz mais de 30 anos que trabalho atendendo a Deus e ao mundo, mas nunca tinha escutado essa expressão. É querido de quem mesmo? Demos uma boa gaitada e ele foi à oficina da família, e eu fui à orla, correr.