Garibaldi: entre sua baqueta da bateria alucinante e múltipla, e sua luneta cromática de pinceis

Colunas

Raiz subterrânea arte de Garibaldi Soares

Carlos Gurgel escreve sobre um ágil jovem artista potiguar "Varre teu sótão, Soares. recolhe tua floresta e voa. como um homem pássaro"

06 de outubro de 2020

Um dia tudo isso será seu. esse jardim desse casarão afastado do centro da cidade. a insuspeita fração do percurso ao redor da praça que o esquecido relógio por nunca ter reconhecido seu dorso, construí-se na completude das suas tão declaradas escondidas confluências. o beijo guardado sobre os pingos da chuva ao redor do pequeno vilarejo de uma cidade as escuras, tão indelicada com seus habitantes dessas cartas dos correios. está tudo tão impuro. e tristemente moderno. um moderno ocre chega dar medo na alma. na alma dos seus cães, na alma dos sons que saem da garganta de um vizinho desconhecido. hoje, me lembrei da longuíssima avenida por onde os imperceptíveis lastros de tanta coisa perdida, se fez vão. paz, por meio das vielas, de tantas vozes solitárias, de tudo. de tudo de um luto coletivo, chega dar uma melancolia dessa etérea insônia, como um lenço de uma viúva encharcado de dívidas e tesões. essa tensão da miséria no meio da noite, que nunca que vai ter fim. fico a imaginar o intricado laço dessa miséria cada vez mais incontrolável com o complexo cesto do sexo, sem intramuros e barreiras, primo de uma performance sem véu. sem a esteira estereotipada desses casais mansinhos e que nunca vão saber o sabor da madugada crua. entorno de uma fatia da boca sedenta de lasciva e pecado. festas e crepúsculos. sejamos mais que meras sombras nessa hora onde o nascer da lua hospeda o cortejo de tantas lágrimas empalhadas. sejamos sim, como a leve folha do coqueiro que fica esperando pelo aparecimento de tantas, inúmeras pessoas desconhecidas. 

O veloz cortejo dos cães pela cidade. como se fossem párias, uma avalanche de uma fome (dessa fome). parece que esses animais transitam como se estivessem mortos. como um declive no ar que os torna bichos sonâmbulos, ao menor instinto de tantas maresias noturnas. cães, são como ângulos vadios de um mesmo nicho daquela rua, por onde o tempo perdido, de tanta imperfeita sorte, tempero desse trópico, palavra mal pronunciada; já não dá conta mais dessa fornada que vem vindo, torre, tapete de tantas ilhas do mundano, completamente cúmplice, círculo campal, víbora de um quintal sem fascínio. esse mundo imundo, mudo nu, como enormes declaradas frágeis faces que não esvoaçam seus pés e arvoredos, quedam como um parapeito, traidor dos seus leitos e tesouros. como se fossem sítios de tantos velhos vidros espalhados pelas calçadas, órfãos de tantas fisionomias nos alpendres dessas casas sedentas por uma nova esquina, estalagem de dormida e sonhos. inquebrantáveis espaços dos silêncios das manhãs. era assim mesmo que fervilhavam os olhos se abrindo das pessoas por um longo corredor de tanto trêmulo guia da vida noturna, que os cães e seus amigos sentiam, fortaleza que chega dar arrepios, como se fossem largadas bússolas ao redor da irretocável lua, a olhar, como um amortecido sinal, o que se passava do outro lado do rio. imperecivelmente belo e perdido.

Os nervos de uma cidade tem a fisionomia dos seus habitantes. crer na força dos seus braços, na força dos seus corações é como palmilhar uma inesgotável urbana vela, amiúde tudo do que dela sai, retorna com mais vigor, como um fogaréu de eletricidade eterna. pouco se diz, por obra do acaso, que a natureza e seus bairros, são como desconhecidos jardins a procura da sua própria respiração e vigor. tampouco, e assim dizem seus inúmeros habitantes anônimos, uma cidade é como uma plataforma com incontáveis círculos de vícios, tamanha sua envergadura rica em escorregadios, inúmeros olhares de uma gente guardada entre suas casas e fogões. ir para bem longe do centro da cidade nesse tempo que se vive, é expor como uma borrifada bolha largada, a enorme passarela por onde a armação da sua paisagem, escorre. correr como um fugidio mutante dessa realidade farta e falsa, afasta, por dias, o medo da efêmera busca. da insustentável e incrédula paixão que se tem por tantos botecos, vielas, cortejos das suas artérias, subidas e descidas que ao percorrê-las por esses quadriláteros de ferros, centenárias ruelas abandonadas e escondidas; esquecemos de nos dar as mãos. assim, amar o tempo da cidade por onde voce adorna seu andor, é encontrar tempo para pensar sobre o que seus habitantes desejam e transpiram. 

Sexta-feira. um homem com todo seu fetiche lunar sai às ruas. procura desesperadamente pelo seu rito perdido. como incontida e frenética busca, vasculha sua aquarela/baqueta noturna, seu inquebrantável encanto por todo tipo do claro/escuro dos seus espaços. origem da sua urbe apocalíptica solar, garimpa com seus olhos, o coração de uma melodia, transe aquariano. labirintos libertários. sobretons desafiadores. como um voyeur espacial verte uma nova cartografia dos seus traços, pergaminhos de cores, abusivo e alucinatório arco por onde toda sua obra pictórica tremula, como um desenho sem fim. entre nuvens e clarões como criador do seu veludo vestuário sonoro/visual: esse antropofágico Soares, Garibaldi, surge. justo lá, onde a sinergia das cores e dos sons pulsa como um redemoinho incandescente. percute o paiol do seu eixo melódico, ramificando com o tambor da aldeia que ele próprio funda, essa partitura selvagem e febril. 

A arte que parte de quem se descobre cobrindo a paisagem de tantos batimentos sonoros. de quem ingressou no seu tempo se jogando no poço por onde as constelações, arco íris das cores, gravita um raro novelo do seu olhar, da sua pulsação. esse curso do que a madrugada no calor da sua procura, surge e flui,  nuances e pontos, crateras, vulcões, saltos, respiração. lacre de um outro ar na criativa atmosfera. encaixes, transposições, o talhe do tatame do seu cozimento com sua máteria/espírito. dos fragmentos, dos batimentos do que se rascunha e toca. do que se principia e volta. do que se contrai e alarga. como um farol, arco, portal do inconsciente que zune vivo, sem fechadura e a frieza das impossibilidades. vigorar o universo íntimo do artista. salgar ao sol os olhos boquiabertos do autor. reagrupar instintos, construir com códigos nas mãos um outro itinerário, diário esbravejando tanta luz liberta. um lince, como clave, como mãe chã arvoredo. carvão e gotícula de um paraíso sem pele adormecida. montanhas de escolhas, mistérios, especiarias. trespasso do artista acometido do escuro escondido que escuta e liberta. deja vu do olho sem olhos revestido por uma metamorfose, protagonista de cortes profundos. no turbilhão do mundo, o vazio é como uma pólvora acesa.

Varre teu sótão, Soares. recolhe tua floresta e voa. como um homem pássaro rodeado de íngremes luzes alternadas e acesas. estampidos, espartilhos como ar de uma ilha sem linha, rebelde corda além do laço, salivando uma outra seta, porto dos seus passos e partículas. leva também seus domingos fartos de charutos e bigornas. vigoroso esse laço dessa sua partitura que nunca se basta. recorte dos recantos dos pedaços dos seus sons. fortaleza e fermento. impulso dessa magia de saber ser rápido e lisérgico, largo por onde a armadura que te vestes, distila como um caminhante das dunas virgens, o rastro de chuvas e secas desse chão sem fim.