Um passeio por ‘bicicletas para descer ladeiras à noite’ , novo livro de poemas de ana de santana

Colunas

ruas sob a luz dos postes amarelados, céus estrelados e ‘bicicletas para descer ladeiras à noite’

é crucial subir na garupa não pedalada do mais novo livro da poeta ana de santana para romper o simulacro social atualmente estabelecido

10 de novembro de 2021

Jana Maia 

minha primeira bicicleta foi uma caloi lilás com cestinha e rodinhas nas laterais, as quais logo aprendi a me virar por aí sem, talvez um traço de quem eu seja: afoita, caí muitas vezes, encontrei muitos caminhos em cima das bicicletas da vida. não tão estranhamente, esse foi o primeiro pensamento que tive ao segurar o mais novo livro ‘bicicletas para descer ladeiras à noite’ da poeta ana de santana, lançado pela editora sol negro. o segundo pensamento foi pensar que o primeiro pensamento era ingênuo, pouco prático e até mesmo ignorante do ponto de vista estrutural da importância da poesia na literatura. mas é que na falta de entender a didática dos versos e métricas, aprendi a ouvir o coração, é o que me cabe, e me permita uma ousadia: não é o que cabe a todos? 

sentei à mesa e passei um café segurando ana, “de capa” fui capaz de sentir as palavras que de dentro exalavam vida,  num primeiro vislumbre, o livro vasculhou minhas memórias, adentrou a rua de paralelepídeos da casa dos meus avós onde cresci correndo, arrancando pele, à flor da pele. me lembrou que talvez a minha poesia esteja contida ali, que talvez essa seja a minha metafísica, e que cada um de nós possui a sua. descansei na memória primitiva, onde tocava o tengo-lengo do “moço do cavaco chinês”, pra comer até o bucho nunca estufar. já “de orelha” ela se apresentou e me revelou seu defeito de corpo e alma: não saber pedalar essas bicicletas de descer ladeiras à noite. o quanto temos que ser para enfim não ser nada e assim revelarmos os nossos defeitos e virtudes ao mundo? 

o fato é que você terá que me desculpar, leitor ou leitora, minha pessoalidade nesta resenha é somente pela urgente necessidade de mencionar que em suas 108 páginas, 108 poemas, as palavras de ana de santana me sacudiram os ombros com a objetividade de um sussurro de segredo, daqueles que arrepiam o pescoço. a poeta recitou como um lânguido canto dos ventos em meus ouvidos: ai dos que moram longe (exatamente como eu) e que não sabem o que deixaram de si mesmos na terra que os pariu! 

é que me parece que ela vive assim, sem saudosismo mas lotada de memórias, tal qual uma discípula de belchior, pinçando o tempo. a poeta vai lá atrás e volta pra dizer que viver é melhor que sonhar e que cheiro de café novo é melhor que requentado.

aficionada em títulos de livros como sou, penso na escolha da autora, portanto pondero que bicicletas possibilitam encontros, desencontros, chegadas e partidas, jornadas, vento no rosto, trajetos, recados, observações sobre o entorno, quedas, joelhos ralados e novas jornadas mais experientes, assim como fugas e fins. mas como falar sobre fins depois de ter vivido tantos nos últimos tempos? 

ana, homônima de mamãe, fala com sutileza num momento nada sutil, escreve em sons minúsculos sobre os ciclos da vida, sobre só nos darmos conta da nossa existência quando ameaçadoramente ela torna-se finita por todos os poros. sobre a exploração dos nossos medos alimentados toda manhã nas manchetes de jornal, sobre as contagens de mortos estampadas em muitas telas de alto brilho. e de repente, como quem não quer nada, em três versos, sem pretensões megalomaníacas, ela desalinha poderosamente o ponto paris do bordado da vida.

macróbio

o que envelhece a gente 
é o tanto que doemos
o tempo é inocente

a escritora desliza a caneta do brasil a moçambique para falar que seja na arte ou na vida, os olhos dos povos já não refletem mágoa nem perdão, só uma tristeza espelhada. desce ao charco dos muiraquitãs para nos relembrar da força do matriarcado na história, para escancarar que parir é dever da mulher, e morrer também...

suas palavras me lembraram que poema é vida, ou mesmo ausência dela, não é só sobre decassílabos, não é só sobre nohal. a bem da verdade, estamos traumatizados, cansados, e esse livro não pretende ser a síntese de algo mas sim adentrar esse caos que suporta o que chamamos de vida. sobre redes estendidas no canto do mangue mas também sobre envelhecermos uma década em dois anos, não pelo tempo cronológico, mas pelo tanto que doemos, pelo relativismo. 

a verdade é que descobri no alento de sua leitura que eu tenho nohal, know how, sabedoria, memória afetiva, chamem do que quiser, que eu tenho ferramentas suficientes para poemas. descobri que minha base foi uma infância inteira no selim, como quem sabia que um dia precisaria subir bicicletas que descem ladeiras para conscientemente deixar sua terra escaldante numa fuga que só me interessava se acompanhada. 

eu poderia ter escolhido falar sobre tudo, versos não faltam à ana de santana, suas bicicletas descem as ladeiras de candelária e sobem as de olinda, sem desconforto mas com muita inquietação, afinal penso que é para isso que são feitas as bicicletas e os poemas. eu posso até ter pedalado errado, caído algumas vezes, parado para ajustar as correntes, mas certamente o vento bateu no meu rosto durante essa leitura. por fim, na falta de poesia ou léxico pessoal, faço minhas as palavras da autora: 

“talvez alguém tenha delicadeza suficiente
para reconhecer Deus em disfarces
para engolir o sol e clarear a escuridão entre os ossos
para expulsar demônios de certas igrejas e de dentro de si
para, vagueando, encontrar alguma fé
que lhe devolva a poesia. quem dera fosse eu.”

trecho do poema fé



    bicicletas para descer ladeiras à noite é o mais novo livro de Ana de Santana e está disponível para compra via direct do instagram  @solnegroeditora ou através do e-mail edsolnegro@hotmail.com.