Nascida em SP, Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras e mora em Manaus, onde escreve e milita
Reportagens
Na série Literatura pelo Brasil Afora, autora analisa sua obra, o papel social do escritor e festeja a fase atual para as mulheres autoras
21 de junho de 2022
Cefas Carvalho
Nascida em 1960 em São Paulo, Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras e mora em Manaus, capital do Amazonas onde escreve e milita culturalmente. Publicou livros como “O Poder da Fé” (2016), “Olho a Olho com a Medusa” (2017), “Orelha Lavada, Infância Roubada” (2018), premiado com Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas; “O Verso do Reverso” (2019), agraciado com o Prêmio Cidade de Manaus 2019 de Melhor livro de Contos, “Terra da Promissão” (2019), “As Três Faces da Sombra” (2020), “Tocaia do Norte” (2020), vencedor do Prêmio Cidade de Manaus de Melhor Romance Nacional (2020) e também o romance “Sonho Negro” (2021). Sandra falou nesta entrevista sobre seus livros, mercado editorial, situação da mulher da literatura, pandemia entre outros temas. Confira
Você nasceu em São Paulo, mas mora em Manaus. Como essa vivência em lugares diferentes de um país continental afetou sua visão de mundo e sua literatura?
Viver em vários lugares, experienciar modos de vida e costumes diferentes, me deram maior tolerância e compreensão desse imenso mosaico humano de que fazemos parte. Quem tem a oportunidade de sair de sua zona de conforto, relacionando-se com pessoas de fora de sua bolha social, tem a oportunidade de compreender melhor as diferenças entre as pessoas, e entender que a diversidade não só é representativa do nosso pais como também é muito humanizadora, ou deveria ser, especialmente num país que se diz cristão, que vive de acordo com o preceito de aceitação ao próximo. Isso me enriqueceu como ser humano. E, como somos sujeitos constituídos sócio-historicamente, testemunhas do nosso tempo, influenciados por tudo o que acontece à nossa volta, vejo minha literatura como extensão de mim mesma, um meio de dar voz a todo tipo de grupo social.
Você já venceu diversos prêmios como o Manaus e menção no Casa de las Americas. Qual a importância das premiações literárias?
Nenhum escritor deveria criar uma obra tendo como objetivo final a premiação literária, mas, sem dúvida, os prêmios chancelam a qualidade de uma obra, favorecendo a venda de exemplares e dando maior visibilidade ao autor/a e à sua obra dentro do mercado editorial.
Ao que parece as mulheres estão se não escrevendo, pelo menos publicando mais. Como vê este atual momento das mulheres escritoras e como o mercado editorial lida com elas?
A fase atual tem sido muito feliz para as mulheres que escrevem, que sempre escreveram. Algumas, em séculos passados, escreviam sob um pseudônimo masculino. Margareth Atwood, autora de O Conto da Aia, recente fenômeno mundial graças ao sucesso da minissérie com o mesmo nome, começou escrevendo sob um pseudônimo masculino. Temos inúmeros exemplos de mulheres talentosas que tiveram suas obras usurpadas (ou nubladas) por homens. Maridos, inclusive, seja no campo da literatura, pintura, ciências, etc. Apesar desse avanço fortuito, o mercado editorial ainda é mais favorável aos homens brancos, de classe média, dentro do eixo Rio-São Paulo. Há muito a ser feito nesse campo ainda, mas as mulheres estão reivindicando seu espaço, formando coletivos como Mulherio das Letras, As Contistas, As Marianas, etc.
"Tocaia do Norte" é um romance premiado e elogiado. Qual a origem deste projeto e como foi o processo de escrevê-lo?
Eu ainda escrevia meu primeiro romance, O Poder da Fé, quando uma personagem da história morria na rodovia BR-174. Para melhor contextualizar, iniciei uma pesquisa sobre a estrada e encontrei na internet referências a respeito desse massacre tenebroso da expedição do Padre Calleri, ocorrido em 1968, que desencadeou o genocídio de quase 3 mil indígenas Waimiri-Atroari pelos militares. Foi o estopim instigante. Imediatamente, busquei toda a bibliografia que pude encontrar, travei contato com algumas pessoas que conheceram o padre Calleri; e um senhor que trabalhou na construção da estrada. Eu me senti compelida a resgatar essa história e a resgatar a reputação desse padre, difamado injustamente à época. Foi apaixonante todo o processo, a busca de informações, a criação dos personagens centrais, a reconstituição histórica. Eu me emociono até hoje com eles. O interessante é que a história se tornou atual e a temática indígena entrou em voga novamente devido aos trágicos fatos testemunhados por nós ultimamente.
Já o romance "Sonho negro" fala de um tema atual - o trabalho com petróleo - e delicadas relações pessoais (infidelidade, amor, desejo). Como foi escrever e publicar este livro?
Meu marido foi petroleiro por quase 40 anos, então eu tinha em casa uma fonte fidedigna com quem podia contar e consultar a hora que quisesse. Fiz várias entrevistas com ele, que me explicou o básico para dar verossimilhança à história. Eu procurei ser fiel na caracterização de quem vive embarcado, de quem ajudou a construir o que o país tem de melhor em termos de avanço do conhecimento científico e pesquisa em águas profundas. E também do que tem de pior. Busquei um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal do engenheiro Pedro. O filho/anjo dele, serviu como um sopro para filtrar a experiência humana. Não é à toa que seus rins – órgão que filtra as toxinas – sucumbem e se deterioram, sem dar conta de lidar com tudo. Foi muito prazeroso escrever Sonho Negro, mergulhar nas camadas humanas desses personagens. O livro foi selecionado numa chamada da Editora Caravana e muito bem recebido.
Acredita que quem escreve tem um papel social a cumprir?
Eu acredito que há uma gama extensa de literatura sendo escrita e publicada. Há livros para todos os gostos. Há leitores para todo tipo de gênero. Horror, erótico, entretenimento, não-ficção, ficção científica; romance histórico, regional, de formação etc. E há também a literatura mais engajada, que faz crítica social, que dá voz a quem não tem voz. A diversidade não só é bem-vinda como desejada. As obras que cumprem um papel social, no meu entendimento, têm uma relevância maior. Fazer da literatura resistência, nos dias de hoje, é ter nas mãos uma ferramenta de luta a favor dos direitos humanos, das reivindicações sociais e contra a opressão de determinados segmentos.
O período mais agudo e de confinamento da pandemia afetou a classe literária. Como foi sua produção literária e relação com a literatura naquele período de lockdown e pré-vacina?
A literatura me serviu de válvula de escape, produzi muito durante esse período, contos, romances e uma novela. Foi o que me manteve sã, diante de tantas mortes, diante de tantos desmandos, diante de tanto negacionismo e retrocesso. Através de lives, pudemos trocar ideias, divulgar obras e refletir sobre esses novos tempos.
Sua literatura é marcada por conflitos humanos, mas quase sempre em um cenário maior que a questão individual. É proposital esta colocação dos dramas pessoais como parte de uma força maior? Como funciona essa relação personagem x cenário da trama?
Sim, é proposital. Como disse acima, somos sujeitos e testemunhas do nosso tempo. Nossos personagens também são. Eles vivem dentro de um contexto histórico, não podem ser dissociados de algo maior, que, se bem trabalhados, podem dar maior dramaticidade e compreensão à narrativa. Não consigo desvencilhar um do outro.
Quais seus próximos projetos literários?
Eu estou prestes a lançar um novo romance, “Estranha entre nós”, que se passa no período da ditadura militar, no Hospital Colônia de Barbacena. O manuscrito foi selecionado em uma chamada da Editora Libertinagem. Eu havia lido o livro da Daniela Arbex, o Holocausto Brasileiro, e fiquei impactada com esse capítulo triste de nossa história. Fui atrás de documentários e livros e, em determinado dia, vi a personagem em minha mente, bem definida com sua trajetória. Então foi só escrever. Escrever nos salva, escrever nos mobiliza, escrever para educar. Sempre.
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