É bonito conhecer o caminho dos que vieram antes. Foto: Freepik

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SANGUE DO MEU SANGUE, EU MESMA

As histórias dos nossos antepassados nos ajudam a conhecer quem somos, como diz a Na bela peça literária que Chico Buarque leu no Prêmio Camões

27 de abril de 2023

Clotilde Tavares

No discurso de Chico Buarque ao receber o Prêmio Camões ele fala de coisas interessantes que a mídia não comentou. Realmente, na bela peça literária que Chico produziu e leu na solenidade, há muita coisa para ser falada e comentada, e somente com o passar do tempo iremos aos poucos dando conta de tudo.

Quero, no meio daquelas frases, identificar as referências aos antepassados, já consagrado na letra da música Paratodos onde o poeta a eles se refere. Destaco o trecho:

O meu pai era paulista,

meu avô pernambucano,

meu bisavô mineiro

meu tataravô baiano.

Durante muito tempo tive como uma das atividades mais prazerosas o estudo das origens da minha família, ocupação que me distraiu, me fez adquirir conhecimento sobre a colonização dos Nordeste e outros temas, me fez viajar e conhecer gente, além de encontrar e conhecer pessoalmente primos ao longo de três estados e virtualmente no Brasil inteiro. E é porque eu praticamente só estudei a fundo um dos ramos da árvore: o ramo dos “da Santa Cruz Oliveira”, sobrenome da minha terceira avó Anna Francisca e do seu pai Theotônio, meu quarto avô, que viveram no século XIX. Então, se você está lendo isto e tem Santa Cruz no sobrenome, é meu primo ou prima em algum grau.

Chico também diz que...

... tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar.

Isso não parece ter ocorrido na minha família, pois fotos antigas mostram na face dos tios e tias, cujos nomes não foram apagados, os traços desses brasileiros que todos somos, bonitos e fortes, de todas as cores – ou seja: nesta família tinha de tudo.

Por outro lado, preciso concordar com Chico quando ele diz que...

... Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias o sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.

A crônica familiar escrita há bem uns cem anos relata que meu trisavô Joaquim Salgado de Vasconcelos, marido daquela Anna Francisca referida acima, era dono de “vasta escravaria”, e por isso devia ser um homem rico.  Mas tudo se desfez no pó dos tempos, e nem as sepulturas existem mais, pois andei procurando por elas e provavelmente estão debaixo de outras, que por sua vez também viraram pó. Nada mais resta, somente os registros que eu tento preservar mas que também virarão pó, lixo ou papel vendido no peso quando eu não estiver mais por aqui. Afinal, quem hoje se interessa por isso?   

O curioso é que quando eu dizia às pessoas que estava procurando meus antepassados, logo perguntavam se eu havia encontrado algum conde ou barão; ou se era descendente de algum nobre florentino ou fidalgo espanhol. Como falei antes, tinha – ou tem – de tudo.

Alguns dos meus antepassados, os tais citados Salgado de Vasconcelos, foram agricultores e criadores de gado, mascates e tropeiros. Havia ainda os Santa Cruz, que eram bacharéis, fazendeiros e políticos, e um deles quase virou cangaceiro, à frente de um “exército” de cerca de 400 homens, somente porque se indispôs com os políticos que estavam no poder. Isso foi em 1912, em Monteiro/PB e a história é contada por Pedro Nunes no seu espetacular livro “Guerreiro Togado” e citada por Ariano Suassuna n’A Pedra do Reino. Há uma versão resumida no meu blog, e o link vai abaixo.

Tudo isso é do lado da minha mãe, onde ainda há ramos não pesquisados, como os Duarte, de Canhotinho/PE e os Ferreira, de Flores e Sertânia, também em Pernambuco.

Os Tavares, do lado do meu pai, eram jornalistas, intelectuais, mas nenhum deles famoso: socialistas, viviam dando com os costados na cadeia sempre que havia uma escaramuça política qualquer.

Tenho muito orgulho do meu povo, e das histórias que descobri sobre eles. Mas a pesquisa genealógica é uma coisa insana, de tão trabalhosa. Consome tempo e dinheiro. Se você imaginar que temos dois pais, quatro avós, oito bisavós, dezesseis trisavós, trinta e dois tetravós e assim por diante, vai entender porque o assunto é tão apaixonante quanto vasto e impossível.

Eu consegui chegar modestamente aos meus oito bisavós, quatro trisavós e dois tetravós. Conseguir encontrar todos os trinta e dois tetravós é quase impossível, principalmente porque a maioria era gente pobre, modesta, sobre quem não ficou nada escrito.

Apesar disso, depois de uns anos, vi que os mortos estavam ocupando mais espaço na minha vida do que os vivos, e parei com a atividade. Não me arrependo, nem dos anos que dediquei a ela e nem de ter parado.

Foi bonito conhecer os que vieram antes, mesmo sumariamente. O que sei é que todos vivem dentro de mim, impressos no meu DNA, e que sou essa amálgama de mascates, bacharéis, caboclos brabos, tropeiros, jornalistas, pistoleiros, agricultores, fazendeiros, comunistas, sesmeiros, bandidos e coronéis. Sangue do meu sangue, eu mesma, Clotilde Santa Cruz Tavares.

 


A Guerra de Doze:um resumo - https://umaseoutras.com.br/a-guerra-de-doze/

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