É hora de bater a areia, recolher o protetor solar e a toalha, e rumar para casa. Foto: FreePik
Colunas
A vida só começa depois do Carnaval, entendendo-se por vida a vida séria, meio chata, produtiva e necessária da qual todos temos que participar
31 de março de 2022
Clotilde Tavares
Ouçamos o doce Carlinhos Lyra, que em 1963 cantava “O amor vai ser como tem que ser para ser amor, depois do Carnaval”, e também a sensual Lexa em 2022 mandando ver: “Esse papo de casal, só depois do carnaval. Agora é hora de sentar, não é hora de parar.” Há um abismo de 60 anos entre esses dois artistas mas o recado continua o mesmo: a vida só começa depois do Carnaval, entendendo-se por vida a vida séria, meio chata, produtiva e necessária da qual todos temos que participar para pagar nossas contas, construir nossas carreiras, criar nossa família.
Todas as iniciativas esbarram nesse argumento irrespondível. Não adianta fazer agora porque é verão, essa quadra ensolarada da vida que se repete todo ano, quando aqueles que podem – e são cada vez menos, esses que podem – atiram para o alto a roupa formal e a agenda de compromissos, botam um short ou bikini, enterram o pé na areia e se dedicam a sobreviver de caranguejo e cerveja gelada.
Na sequência vem o Carnaval, que leva às últimas consequências os desfrutes iniciados no verão. Romanticamente, como o Carlinhos Lyra citado, podemos somente brincar de amor o verão inteiro, uma vez que o amor de verdade, amor do jeito que deve ser o amor, fica para depois do Carnaval. A linda Lexa também não quer saber de ligação séria. Papo de casal, só depois do Carnaval. A hora agora é de sentar, ela conclui, e o verbo, nesse contexto, significa coisa bem diferente de estar sentado como você está agora, lendo esse texto.
Mas o Carnaval termina, as férias acabam, começam as aulas, os postos de trabalho voltam a funcionar de verdade, e a vida entra nos trilhos, esse caminho de ferro, chato, reto, determinado e teoricamente habilitado a conduzir o trem do cotidiano a uma estação segura. O doce vento Leste, perfumado com essências de praias ensolaradas, muda de direção, se encrespa, e passa a soprar do Sul, trazendo odores de algas e marés estagnadas, invadindo janelas, arrancando cortinhas e desarrumando revistas.
Sutilmente, a gente sente que é hora de bater a areia, recolher o protetor solar e a toalha, e rumar de volta para casa em busca de um banho doce, uma cama macia e o zumbido do ar condicionado a acalentar um cochilo cheio de sonhos doces e restauradores. Voltamos a nos conectar com o relógio e o calendário, e o equinócio desencadeia o impulso ariano de começar as coisas, a energia inicializadora que inaugura as atividades das sociedades humanas.
Animada por essa energia, presencio, neste início de ano, dois eventos emblemáticos na cultura: a posse da grande Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras e a tomada de posição dos artistas brasileiros no palco do Lollapalooza, dando o tom para este que será um ano especial na vida de todos nós.
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