Durante a vida o ser humano morre algumas vezes
Colunas
Viver é um desviar constante do perigo. No trabalho, na atividade física, ou gozo ganhamos a sobrevida setenta vezes sete
27 de agosto de 2024
Ítalo de Melo Ramalho
É sabido que a única certeza que se tem da vida é a de que ninguém fica para semente. Não entenderam? Essa expressão quer informar que todos/as nós um dia iremos morrer. Que não adianta tentar escapar que o encontro com o oculto está no particular livro de cada um. O dia do juízo final vem nos seguindo a cada experiência vivida.
Continuando de forma mais leve esse vaticínio inicial, podemos perceber e entender que durante a vida o ser humano morre algumas vezes. Alguns fatos, como situações que se desenham menos dramáticas, nos matam quase que diariamente: o trabalho, a atividade física, o gozo... Afetam a nossa caminhada a ponto de também nos libertar como em uma ressurreição. Por outra vertente, algumas situações podem nos aprofundar em um estado de martírio duradouro e que possivelmente ocasione sequelas em nossa saúde mental. No entanto, de alguma forma, viver é divertido. Mas não esqueçamos que de outra maneira é perigoso.
Dia desses, percorrendo as ruas do meu lugar no mundo, em um costumeiro domingo de sol, escutei a voz de uma mãe a reclamar da sogra sobre o porquê do filho estar solto na praça, correndo pra cima e pra baixo, como se fora um menino de rua, perdido no perigoso espaço público ao Deus dará (?). A reclamação era pertinente, porque o menino além de muito arisco, ativo, danado mesmo, estava em um ambiente que, mesmo aparentando uma certa tranquilidade, não apresentava um trânsito tão sossegado de pessoas e de carros como de costume, e requeria, daquela família, uma atenção mais ostensiva para com o pequeno além do alcance da vista. Ao fim do curto entrevero com a sogra, a mãe capturou o pivete e depois olhando firme nos olhos disse: eu não quero ver você de sobejo com a morte, tá!
Escutei aquela expressão de sobejo com a morte e fiquei encantado. Quando eu era pequeno do tamanho do personagem desta crônica, ouvi muitas vezes, principalmente da boca da minha mãe, para que não aceitasse o sobejo de ninguém. Com alguma curiosidade recorri ao dicionário para certificar-me do significado da palavra sobejo. Pois, o que entendia ser era o mesmo que o resto de comida. E encontrei! Encontrei três enquadramentos de possibilidades: adjetivo; substantivo; e advérbio. Para mim, depois da rápida investigação, a classe gramatical que me pareceu mais próxima dos cuidados evidenciados pela mãe foi a do advérbio. A coitada não queria que o filho estivesse, excessivamente, dando sopa para o azar; sendo cortejado de pelo imprevisto.
Depois de presenciar essa situação, volto para casa na companhia do meu mp3. Já exausto, ou mesmo morto, de escutar sempre as mesmas coisas, ativo o modo aleatório da geringonça digital e o artista contemplando foi o Renato Braz. E a primeira canção a tocar no aparelhinho foi 7x7. Uma linda composição de Guinga e Aldir Blanc; dois dos melhores da nossa música popular.
Não sei vocês, mas para mim Braz é sem dúvida a melhor voz masculina depois do Milton Nascimento. E na interpretação dessa belíssima canção ele dá uma aula de tempo musical. Um metrônomo na pele e na voz do pandeiro. Nada melhor do que terminar a caminhada deste domingo, no qual percorri, como diz a letra, alguns mares, algumas léguas, sete palmos, sete quedas, sete cores, sete selos, sete portas... e morrer no êxtase com a festa da cultura brasileira. Que é o mesmo que morrer de amor pelo povo. E esse é o papel de quem olha, ouve e escreve: sobejar-se com a vida setenta vezes sete.
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