Prosseguir no sentido das ondas, que o mar nos leva e traz como nas primeiras águas

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Sobrevoos do pensamento 

A necessidade de escrever se traduz em ouvir a própria voz e encontrar nas palavras a essência vital

21 de agosto de 2021

Lívio Oliveira – advogado público e escritor

A NECESSIDADE DE ESCREVER se traduz em ouvir a própria voz e encontrar nas palavras a essência vital. É como doar o sangue. Há uma hora em que – se não acontecer – vem uma coceira, um embotamento do pensar, um desespero mesmo. Nada a fazer, a não ser rolar a ponta do lápis sobre o papel e buscar a seiva que dele finalmente escorrerá e pingará sobre os pés descalços da verdade íntima, aquela que agora se doa em pedaços da gente.

2. JULGAR A ARTE alheia não é algo fácil. Tento sempre observar e apreciar com benevolência. Se o esforço se transformar em sofrimento, termino abandonando a tarefa. Pode ser livro, filme, peça de teatro, canção, obra visual ou até mesmo textos jornalísticos e falas anedóticas, estas que alguns teimam em manter nas conversas entabuladas a duro custo. O difícil é desviar o olhar, distrair a audição, fugir do incômodo reiterado dos invasores de paciências. Deve-se insistir nesse exercício com delicadeza e cuidado. O diálogo pode até perecer, mas não deverá ser por falta de uma atenção até os nossos limites.

3. AS HORAS ADIANTADAS me lembram sempre que não sou eterno. As inquietudes podem ser um sinal de que não me resigno com isso. Não há mesmo o que fazer, a não ser criar. O ato de criar permite a certeza de que os nossos fragmentos serão lançados ao solo, com a intenção de que brotem e continuem o movimento da vida. Cada pequena edificação criativa significará semente e ramo do nosso ser. Há de se continuar, seja lá qual for o resultado disso. Uma certeza? Sim! Enquanto há vida, há vida. E há belezas a colher.

4. NOVAS BANDEIRAS tremulam a cada despertar. Não se pode viver estanque ou acomodado. Não se pode estacionar, nem se resignar. Na vida, o movimento e a narrativa dão o imperativo sentido. É não parar, a não ser para revisar a carta náutica, a carta de mar(e)ar, o plano. Prosseguir no sentido das ondas, que o mar nos leva e traz como nas primeiras águas, aquelas que nos nutriram e nos embalaram no ventre materno.

5. A NECESSIDADE DE OBSERVAR provoca a atenção e a refina. Essencial perceber o campo aberto para o ingresso das palavras, associar-se a elas em prol da arquitetura de um pequeno castelo, morar nele e guardar e amar a princesa que se instala no pensamento e na ponta da língua com sede.

6. UMA HARMÔNICA toca longe, desliza. Não é um instrumento comum por aqui, nestas bandas. As excentricidades são permitidas e o som se eleva, atravessa o quarteirão e se aloja naqueles ouvidos, que não esperavam, antes não percebiam. Algo que chegou célere, algo perdido, algo recebido com leveza, prazer, pelas suas belezas recônditas, pelo seu componente de sedução. As notas tocam a pele que se arrepia, na melodia vencida em êxtase. Uma coisa que cintila e ferve.

7. ENTRE OS LIVROS passeio alerta. A impressão é a de que serei surpreendido por algum dos personagens ou por algum dos autores se projetando para fora dos volumes de papel. Talvez eu sonhe mesmo com isso, para minimizar a minha solidão crônica, internalizada em meio a tantos prazos e prazeres, diante das angústias paralisantes e dos estímulos e desafios dolorosos, mas realizadores, esses que nos levam de verdade para um lugar melhor, mesmo que enfrentemos eventuais e aparentes derrotas. Até porque a vitória vem mesmo é com a permanência do barco nas águas verdeazuis, oceânicas, para que a experiência não se dissipe e os fragmentos da gente sirvam para a construção de novos caminhos.