Suflê de chanana com tofu é receita criada em colaboração com chef Deborah Sá. Foto: Angela Almeida
É Típico!
Pesquisadores da UFRN lançam livro digital com receitas de pratos a base de plantas alimentícias não convencionais — as PANCs
22 de janeiro de 2021
Por Cinthia Lopes | Editora e redatora
Você sabia que a urtiga é comestível e altamente nutritiva, e que a chanana, aquela florzinha sem graça encontrada nos canteiros de Natal, pode ser ingrediente de um delicioso suflê? O que ambas tem em comum é a classificação de PANCs — Plantas Alimentícias Não Convencionais. Nos últimos anos diversas espécies de plantas desconhecidas comestíveis são catalogadas por estudiosos, cozinheiros e nutricionistas. Prova de que em matéria de biodiversidade alimentar o Brasil é generoso, mas a falta de informação faz com que a maioria da população não as reconheça como alimento. É aquilo que nós nordestinos chamamos de mato. É mato sim, mas de comer!
Existem mais de 30 mil espécies de plantas e flores comestíveis com alto valor nutricional, mas a maioria está distante dos cardápios e das cozinhas convencionais. Só temos acesso a um número limitado de hortaliças, verduras e legumes. Segundo especialistas, 60% de calorias que ingerimos vem do trio de vegetais arroz, milho e trigo. Além da desinformação, o preconceito. Difícil achar quem queira substituir a chia pela florzinha de rua, apesar de sua comprovada propriedade antioxidante.
Em Natal, um projeto que tem contribuído para a prática dos conceitos de biodiversidade e sustentabilidade através das PANCs é o LabNutrir, Laboratório de Horta Comunitária vinculado ao curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A horta começou tímida e hoje gera uma grante troca de ideias e pesquisas.
Foi a partir da evolução deste projeto que nasceu o livro “Culinária Selvagem – saberes e receitas de plantas alimentícias não convencionais”. Em formato digital e gratuito, o livro é fruto de um trabalho em equipe capitaneado pela professora, PhD e pesquisadora Michelle Jacob, em parceria com Nilson Sintra e a fotógrafa e artista plástica Angela Almeida. Eles organizaram a obra que contou com a participação de chefs e outros pesquisadores autônomos.
Paella Vegana de PANCs
Ricamente ilustrado, o livro apresenta diversas receitas criativas tendo como ingredientes plantas quase desconhecidas em antepastos, molhos, nhoques, infusões, vinagres, quiches, suflês, farinhas, doces, pães. Além das receitas, traz informações nutricionais e botânicas sobre 12 plantas alimentícias não convencionais. Todas foram testadas no laboratório e preparadas com os ingredientes colhidos na horta da Universidade. O leitor pode encontrar Chutney de Camapu, Molho de Cana-do-Brejo, Suflê de Chanana, Quiche de Coriru, pão de Ora-pro-nóbis, paella vegana de PANCs dentre outras. Para acessar e baixar o PDF clique AQUI
Nhoque de banana verde com folhas de bredo. Foto: Angela Almeida
Em entrevista ao TÍPICO LOCAL, Michelle Jacob detalhou a iniciativa e explicou que algumas receitas foram desenvolvidas por colegas pesquisadores autônomos ligados ao LabNutrir, como a nutricionista Neide Rigo ou por cozinheiros profissionais, como a chef de cozinha Deborah Sá, do Espaço Cozinha Ecológica. “Todas as receitas foram testadas previamente pela equipe de editoração do livro utilizando a estrutura de um outro laboratório do Departamento de Nutrição, o Laboratório de Técnica Dietética”, disse.
O fruto da frondosa Monguba, espécie de castanha que lembra o cacau e pode ser vista nos canteiros da Av. Amintas Barros
O objetivo do livro, segundo ela, é fazer com que o conteúdo fure essa bolha e chegue nas mãos de pessoas que se beneficiem das informações no sentido de romper preconceitos e racionalizar o medo com conhecimento sobre botânica e culinária. “Acredito que conseguiremos atingir esse objetivo, visto que em menos de dois meses de publicações já tivemos cerca de 9000 downloads da obra”, comentou Michelle.
No momento da execução dos pratos para as fotos, a casa da pesquisadora virou um estúdio improvisado. “Toda a equipe se reunia para executar as receitas, fotografar e no final encerrar com o merecido almoço”.
Perguntada sobre o sabor e criatividade, Michelle Jacob contou que uma das gratas surpresas do livro são as receitas da monguba, uma espécie de castanha muito saborosa que lembra o cacau, encontrada na área urbana de Natal. Ela conta que a árvore de monguba foi identificada durante um mutirão da NuTrir. “A árvore passaria desapercebida por nós, como os canteiros centrais da Roberto Freire, da Amintas Barros ou na extensão do campus da UFRN. Ela é uma árvore frondosa, que dá uma sombra generosa, além das flores lindas e perfumadas e, claro, com o fruto difícil de ignorar, a monguba, que parece um pouco com o cacau”, revelou.
Confira a entrevista completa:
TL: Como surgiu a ideia de fazer o livro ilustrado Culinária Selvagem?
Michelle Jacob: Há alguns anos venho me dedicando a estudar o tema da biodiversidade alimentar, sobretudo plantas. As plantas carregam narrativas nutricionais, biológicas, culturais, estéticas, ecológicas. Por isso, um espaço de pesquisa dedicado ao seu estudo deve contar com a colaboração de pessoas com visões diferentes de mundo. Essa foi uma das razões que me levaram a fundar o LabNutrir (Laboratório Horta Comunitária Nutrir), um laboratório multidisciplinar e de base comunitária no Departamento de Nutrição (@labnutrir). Para estimular a diversidade de pessoas que circulam pelo laboratório, promovemos aulas abertas à comunidade, além dos projetos de extensão. Foi em uma dessas aulas, onde o gastrólogo Nilson Cordeiro atuava como professor convidado e a professora e artista Ângela Almeida estava como participante, que surgiu a ideia. A Ângela, que tem a habilidade do design, comentou comigo enquanto fotografava algumas imagens na aula: poderíamos fazer um livro com essas receitas. Começamos a trabalhar no projeto na semana seguinte.
As receitas foram desenvolvidas no laboratório de Nutrição?
A maioria das receitas nasce como parte desses processos formativos de ensino e extensão no LabNutrir. Algumas outras receitas foram desenvolvidas por colegas pesquisadores autônomos, como a nutricionista Neide Rigo ou por cozinheiros profissionais, como a chef de cozinha Deborah Sá, do Espaço Cozinha Ecológica. Todas as receitas foram testadas previamente pela equipe de editoração do livro utilizando a estrutura de um outro laboratório do Departamento de Nutrição, o Laboratório de Técnica Dietética. No momento da execução dos pratos para as fotos, a minha casa virou um estúdio improvisado. Toda a equipe se reunia para executar as receitas, fotografar e no final encerrar com o merecido almoço.
Livro virtual pode ser baixado gratuitamente em arquivo PDF. Fotos: Angela Almeida
Quais receitas surpreenderam durante os testes para o livro Culinária Selvagem?
As receitas com monguba (Pachira aquatica). Primeiro porque a castanha, que é a parte que utilizamos nas receitas, é super deliciosa, além de muito nutritiva. As receitas desenvolvidas por Deborah Sá e Nilson Cordeiro também exploram muito bem o potencial da planta que pode ser consumida como leite vegetal, doce de leite, no formato de pralinés, além de virar farinha e daí ser a base de uma variedade imensa de preparações. A partir dessa experiência culinária passamos a perceber como essa planta é comum na nossa cidade. Sempre comentamos nos mutirões do LabNutrir sobre novos lugares da cidade onde descobrimos uma árvore de monguba que antes passaria desapercebida por nós, como os canteiros centrais da Roberto Freire, da Amintas Barros ou na extensão do campus da UFRN. Ela é uma árvore frondosa, que dá uma sombra generosa, além das flores lindas e perfumadas e, claro, com o fruto difícil de ignorar, a monguba, que parece um pouco com o cacau. Por fim, depois do livro lançado, nos surpreendemos com o feedback das pessoas que estudam agrofloresta.
Como ter acesso as PANCs que estão nas receitas?
A maior parte das PANCs pode ser coletada gratuitamente no LabNutrir, que fica nos fundos do Departamento de Nutrição no campus central. Lá temos couvinha, beldroega, trapoeraba, mastruz, palma e até algumas árvores de monguba. Durante a pandemia da Covid-19 estamos com as atividades guiadas suspensas, mas as pessoas podem ir até lá para coletar as plantas, desde que se sintam seguras para identificá-las corretamente. Uma outra forma de acesso é buscar feiras de produtores. A referência em Natal neste ramo é a Cecafes, que fica no cruzamento da Jaguarari com a Mor Gouveia. As PANC, em geral, são plantas espontâneas. Assim, muitos produtores apesar de terem essas plantas crescendo espontaneamente nos seus plantios não as levam para a feira porque não há demanda. Uma boa opção é conversar e encomendar, já fiz isso na Cecafes e deu certo. Um terceiro caminho é aprender sobre as plantas e ficar atento ao seu redor. As PANC estão por toda a parte na cidade: em canteiros, calçadas, praças. Só precisamos prestar mais atenção e aprender a identificá-las.
Molhos, antepastos saborosos feitos com plantas alimentícias não convencionais. Foto: Angela Almeida
Qual o objetivo da equipe ao lançar o livro Culinária Selvagem?
Nosso livro nasce como uma síntese dos esforços dos membros do LabNutrir no sentido de promover dietas que sejam mais sustentáveis para as pessoas, para o planeta e para todas as formas de vida nele. Uma das maiores barreiras que observamos neste processo de aceitação por PANC e que nos levou até a elaboração desse livro foi a questão do como preparar. Quando resgatamos a planta - o recurso biológico - é importante resgatar os conhecimentos associados – a cultura - visto que a forma como cozinhamos as plantas, muda não apenas o seu sabor, mas pode tanto torná-las mais ou menos nutritivas. Por exemplo, a macaxeira que é uma planta super popular na nossa cozinha é naturalmente tóxica. Todavia, algumas técnicas de processamento criadas pelos povos indígenas e extensivamente populares hoje na cozinha (ex. lavagem, ebulição, fermentação, torra), fizeram dela um vegetal seguro para nós hoje. Eu acredito que o estudo da culinária aplicada às PANC e a popularização dessas técnicas pode ajudar a criar esse espaço de segurança para o consumo. Essa agenda de pesquisa científica se abriu para nós no processo de elaboração deste livro.
Camapu é base de licor. Já as beldroegas são usados as flores e folhas
Fazendo um breve balanço desse projeto da horta é possível identificar uma quebra de preconceitos (ou medo) na utilização dessas pancs?
Recebemos muitos feedbacks positivos das pessoas com a publicação do nosso livro. Algumas pessoas já tinham PANC ou nos seu quintais ou recebiam em cestas agroecológicas mas não sabiam como preparar. Outras comentam que não adquiriam nas feiras porque não sabiam como usar. Há ainda aquelas que conhecem as plantas pela primeira vez ao folhear o nosso livro. Outras ainda que têm mais dificuldade de acesso às plantas e entram em contato conosco querendo saber onde conseguir. Em todos esses casos, os retornos são muito positivos. Você puxa o tema do preconceito/medo associado a essas plantas, que é uma discussão importante. Alguns estudos etnobiológicos demonstram que em comunidades tradicionais há um estigma relacionado ao consumo dessas plantas, que muitas vezes são reconhecidas como comida de pobre ou alimentos tribais. Em outras palavras: PANC é comida de quem não pode pagar por comida. Isso faz com que o conhecimento sobre essas plantas seja perdido e que gerações futuras dessas comunidades deixem de consumir esses recursos por medo, porque elas já não são
mais conhecidas.
Suco verde de Trapoeraba
O que é preciso ainda para que essa diversidade alimentar chegue a maioria das pessoas?
Todos nós precisamos de alternativas de nutrição. Mesmo as pessoas que têm condições de pagar por alimentos possuem dietas pobres em diversidade e rica em produtos processados pela indústria. O efeito desse padrão alimentar afeta não apenas nossa saúde, mas a saúde do ambiente. Por exemplo, a literatura científica nos mostra que há uma relação entre o desmatamento produzido pela pecuária e pela agricultura intensiva na produção de surtos zoonóticos, como o da Covid-19. A transformação desse modelo depende de quatro grandes estratégias: aumentar a disponibilidade de alimentos saudáveis, que conseguiremos a partir da concretização de políticas públicas que deem apoio à agricultura familiar; ampliar a acessibilidade a esses alimentos, tornando-os economicamente mais acessíveis; favorecer a conveniência, por exemplo, considerando praticidade de preparos e facilidade de acesso físico a alimentos de qualidade; e, por fim, alterar a forma como a promoção de alimentos saudáveis ocorre, gerando mais demanda e condições para comercialização destes produtos.
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