De repente me vi mãe adotiva de Sunset, linda e resiliente baleia franca de 20 anos. Foto:ProFRANCA

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SUNSET, A MINHA BALEIA

Andava meio solitária e os amigos disseram: “Adote um bicho, Clotilde. É bom, dá um novo sentido à vida.” Segui o conselho e adotei uma baleia

11 de maio de 2022

Clotilde Tavares

Adoro bichos. Fui criada numa casa onde sempre tinha bicho por perto porque Mamãe amava os animais e sempre tínhamos ao nosso redor uma fauna variada. O primeiro bicho de que me lembro foi a cachorra Tiroleza, legítima representante das ruas, que Mamãe adotou para matar a saudade que ela tinha de Pinóquio, o cachorro anterior, que ela amava e que morreu de hidrofobia, ou raiva. Não conheci Pinóquio, ou não me lembro dele, mas Tiroleza faz parte das minhas primeiras lembranças, de um tempo em que eu acho que nem sabia falar direito.

Depois me lembro de um galo-de-campina e de um pintassilgo trazidos por Papai, que duraram pouco conosco, pois Mamãe não gostava de bicho preso em gaiola. Deixou as minúsculas portas abertas e eles ficaram saindo e voltando até que um dia não voltaram mais, foram ser felizes no vasto céu aberto, entre goiabeiras e mamoeiros dos quintais das redondezas.

Desde crianças nos acostumamos a conviver com gatos – eu mesma tive inúmeros e a eles dediquei crônicas e mais crônicas nos meus livros e blogs. Tivemos uma galinha chamada Elvira, uma cotia que atendia por Balalaika e roía os pés de madeira de mesas, cadeiras e armários. Lembro ainda de uma coruja que hospedamos por uma semana e não deu tempo a pegar nome, e os sapos, sim! Pode se espantar, pessoa razoável que me lê, porque em matéria de bicho até os sapos vinham toda noite naquele andar característico - plof! plof! plof! - comer feijão com jerimum machucado, que Mamãe colocava num prato velho perto da porta da cozinha. Rafael e Martiniano atendiam pelo nome e assombravam as pessoas desavisadas que frequentavam a residência.

Na minha própria casa, além dos gatos mencionados, eu tive peixinhos de aquário, inúmeros: beta-splenders, paulistinhas, molinésias, espadas, e os neons que flutuavam em cardumes fosforescentes, coisa mais linda! Ana Morena criança teve um pato – Renato – e uma cachorrinha – Dandara – envenenada por humanos assassinos que pretendiam atingir os gatos. Lá na casa de Capim Macio até um timbu, que chamei de Roberto, aparecia vez por outra para comer os restos que ficavam na pia da cozinha, deixados pela dona-de-casa preguiçosa que sempre fui.
Roberto, o timbu, merece um parágrafo somente dele. Vinha toda noite, depois do jantar, e ficava caminhando pela pia, subia na geladeira, e uma vez comeu um monte de balas que encontrou em um prato, tirando o papel uma por uma com aquelas mãozinhas minúsculas.

Roberto, o timbu invasor

 

Eu achava Roberto uma ternura, mas Ana Morena gritava quando o encontrava na cozinha. Tinha medo, tinha nojo, detestava. Mamãe, muito sábia, deu a receita para eu me livrar dele: “Bote um pires com cachaça, que todo timbu adora. Ele bebe, adormece, e você enrola num pano, bota na mala do carro e vai deixar lá em Ponta Negra, perto dos restaurantes, que ele arranja o que comer e fica por lá mesmo.” Mas eu não tive coragem. Já pensou? O bichinho se acordar no outro dia em lugar desconhecido e ainda por cima na maior ressaca da vida dele? Sem se lembrar dos acontecimentos da noite anterior? Quem nunca? E Roberto foi ficando, até que um dia sumiu de vez, para a alegria e sossego da adolescente cavilosa.

Agora moro em apartamento e não tenho mais bichos. Já estou velha para administrar sujeira de animal, ou para me acordar cedo com seu fulano a miar, pedindo ração. Mas eu andava meio solitária e os amigos disseram: “Adote um bicho, Clotilde. É bom, dá um novo sentido à vida.” Então eu segui o conselho e adotei um bicho. Uma baleia.
Segundo Braulio Tavares, 

“A baleia é talvez o maior bicho
Que existe na terra ou no mar
Mas o homem insiste em lhe atacar
Por inveja por ódio ou por capricho
Para o alto ela lança um grande esguicho, 
Quando emerge de lá da profundeza
Mesmo sendo animal de tal grandeza
A ninguém ela ataca nem ofende
E o homem vê isso e não entende
Como é grande o poder da Natureza!”

Eu amo as baleias. Desde menina, me maravilhava com o imenso animal, e a baleia branca, Moby Dick, que li em quadrinhos, me assustava pela enormidade mas também me fascinava pelo misto de terror e admiração que inspirava. Agora, em um dos meus clubes de leitura, estamos lendo o Moby Dick de verdade, na tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, que saiu pela Editora 34 numa edição caprichada, recheada de ensaios críticos excelentes, e revivo o deslumbramento que povoa minhas memórias de criança.

Também tive, na infância, outras dúvidas sobre o magnífico animal, que me levaram a perguntas inconvenientes quando eu era interna no colégio de freiras. Eu queria saber se também teria um casal de baleias dentro da Arca de Noé, o que levava a perguntas semelhantes em relação a outros peixes, caranguejos, camarões e tudo que vive submerso e não corre o risco de se afogar, por maior que seja o dilúvio. 

No meu livro “As aventuras de Luluca na Paraíba encantada” (Natal, M3 Editora, 2019), um dos personagens principais é Lena, uma baleia jubarte que a menina Luluca conhece numa praia da Paraíba.

No espetacular romance “Viva o povo brasileiro” (Alfaguara, 2008), João Ubaldo Ribeiro descreve em cores vívidas o coito das baleias, uma página de tal força e beleza que, por si só, vale o livro inteiro, e é também a literatura que nos traz outra Baleia, mas uma que não é propriamente um cetáceo mas a cachorrinha de Vidas Secas, imortalizada na cena de sua morte, tanto descrita por Graciliano Ramos como filmada por Nelson Pereira dos Santos.

As baleias foram muito maltratadas pelo bicho homem durante tanto tempo, que usaram dos meios mais cruéis para matá-las, não para lhes comer a carne mas para extrair-lhes a gordura, tão necessária no mundo escuro pré-eletricidade, a alimentar candeias e lamparinas, e também para unir a argamassa que seria o sustentáculo de tantas construções. Nada disso hoje é necessário, mas continuam matando esses animais impressionantes. Felizmente, no Brasil e em vários países do mundo, a prática foi proibida desde 1986.

Essa decisão, referendada por acordos internacionais, foi causada por uma nova consciência ambiental alimentada pela contracultura e pelos ambientalistas. Mas é preciso protegê-las, porque a sanha assassina dos que olham para um bicho daquele e só veem uma montanha de dinheiro continua em alto grau, e há países onde a caça ainda é permitida.
Erasmo e Roberto Carlos na música “As baleias”, mostram o tamanho do problema e questionam a sociedade:

“Não é possível que no fundo do seu peito
Seu coração não tenha lágrimas guardadas
Pra derramar sobre o vermelho derramado
No azul das águas que você deixou manchadas

Seus netos vão te perguntar em poucos anos
Pelas baleias que cruzavam oceanos
Que eles viram em velhos livros
Ou nos filmes dos arquivos
Dos programas vespertinos de televisão...” (trecho)

Tudo isso veio à minha mente de uma só vez quando vi um dia desses na TV uma campanha “Adote uma baleia”. Então eu fui lá no link indicado, preenchi um formulário, fiz um pix de vinte reais na conta da instituição e de repente não mais que de repente me vi mãe adotiva de Sunset, uma linda e resiliente baleia franca de 20 anos de idade. Tudo isso graças ao ProFRANCA – Projeto Franca Austral – que conta com Patrocínio Petrobras por meio do Programa Petrobras Socioambiental.

A baleia «Sunset» - a minha baleia - foi catalogada com o número B219-02, ou seja, ela é filhote da baleia B219. Em 2003, com um ano de idade, encalhou em uma parte rasa na Lagoa de Santa Marta, localizada no Município de Laguna-SC. A saga de Sunset encalhada na Lagoa durou 28 horas, tempo em que resistiu bravamente até que se conseguiu resgatá-la e devolvê-la ao mar durante o pôr-do-sol. Por isso, recebeu o nome «Sunset». 

Foi reavistada 14 anos depois, em 2017, quando estava com um filhote, que nasceu semialbino, ou seja, quase todo branco, ao qual os técnicos do projeto deram o nome de Laguna, em homenagem à cidade onde ocorreu o encalhe. Já pensou, minha gente, que coisa mais linda? Um baleio-baby albino, coisa mais linda que fez esta que vos tecla ficar aqui caducando de ternura?

Além da foto de Sunset em alta definição, ganhei também um certificado de adoção e eles lá me prometeram que vou receber relatórios sempre que houver um avistamento dela. Eu confio que eles vão ficar de olho na minha cria adotiva e desde já estou avisando: cuidem bem da minha Sunset senão vão ver como eu sou braba quando fico com raiva. Os links para adoção e as referências estão em seguida, só custa uns cliques e uma quantia irrisória.

Então vocês estão esperando o quê? Corram lá e adotem baleias! Há muitas e de temperamentos variados, para todos os gostos. Eu escolhi Sunset por ser resistente, por não desistir, e por ser tão original na sua descendência, tendo um bebê tão diferente. Já pensou quando ele crescer, um novo Moby Dick, todo branquinho?

Saiba mais sobre a adoção de baleias em www.baleiafranca.org.br 

Aqui, informe-se sobre o que foi a caça às baleias: https://www.queroverbaleia.com/single-post/a-historia-da-caca-as-baleias

Veja o premiado filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Graciliano Ramos. Versão integral no YouTube https://youtu.be/do-ZTroCt-Y

 


Contatos: http://linktr.ee/ClotildeTavares | clotilde.sc.tavares@gmail.com