A vida é esplendoroso espetáculo teatral de criação e recriação de sentidos e situações
Colunas
No palco da precarização da existência, até mesmo um dilúvio de humanismo seria insuficiente para para vazar o coração embrutecido de fé e dor
27 de setembro de 2024
Ítalo de Melo Ramalho
A vida é como um teatro. É como um esplendoroso espetáculo teatral de criação e recriação de sentidos e situações. Matias Aires, filosofo brasileiro do século XVIII, já escreveu sobre o tema. Eu, por exemplo, na escassez de redesenhar para este espaço alguma das conversas que ando coletando nas ruas da minha aldeia, Aracaju, SE, resolvi inventar uma cena que gostaria que tivesse acontecido, mas não aconteceu. Na verdade, até me empenhei para que acontecesse. Puxei assunto com um, com outra, ali, acolá, mas não consegui, absolutamente, nada com os/as interlocutores/as. As pessoas estavam apressadas; com tempo cronometrado. Entretanto, nem tudo é tristemente acabado, polido, finalizado, como alguns querem que seja. O ser − inclusive o existencialista − ainda é o responsável pela própria invenção de si e do nada.
Na minha arquitetura imaginária da cena a ser construída, o meu olhar tinha como propósito ver a plateia de cima; como se estivesse a olhar a planta de um condomínio residencial daqueles panfletos distribuídas nos semáforos. Tipo cenário do filme Dogville, do cineasta dinamarquês Lars Von Trier, que construiu uma cidade cenográfica sem paredes reais. Saindo da película observo que a falta de paredes tomou conta das pessoas. E ao que parece elas não sabem que estão em latente desespero. Vivem em busca de segurança e significado para as suas angústias, em sítios especializados em produzir desânimo. Quase tudo em silêncio. Não restam dúvidas de que houve uma precarização da existência, e que, possivelmente, até mesmo um dilúvio de humanismo seria insuficiente para vazar, minimamente, o coração embrutecido de fé e de dor.
Utilizar o recurso das lentes de aumento para enxergar o fenômeno é criar máscaras para o que está enraizando-se na moral das pessoas. É praticamente desnecessário. O jogo está sendo jogado e talvez as lentes (macro ou micro) não interferirá na cegueira que se espalha pelas estradas do mundo. Meu amigo fictício tem muita razão quando diz que os verdes que invadem o Nordeste (ou os Nordestes) no período das chuvas têm as mais belas variações de tom. Mas quem é que percebe isso quando os olhos apenas veem paredes? E diz mais: as paredes não são o principal problema quando se pode criar desvios. Pelo contrário: até as paredes dizem muito sobre as socialidades. O pior, para ele, é a busca incessante pela lógica do fast food presente em quase tudo.
Conversando com esse camarada, já absorvido pela desesperança, lembrei do Mateus Aleluia e da sua fabulosa música. Especialmente: Despreconceituosamente. Repeti para o amigo o que diz a letra: que é no passo lento e manso do amor, que se vai vivendo a vida sem se importar com a cor da pele na ida e na volta. Seu Mateus, como gosto de chamá-lo, é um verdadeiro milagre da música brasileira. Ele sabe das coisas. Morou em Angola por longos 20 anos e quando retornou ao país de origem, Brasil, gravou e lançou um disco fantástico; um disco com uma musicalidade absurda. O álbum se chama Cinco Sentidos e é recheado de referências mística, mítica e biográfica. Não deu outra: êxito. Um disco já possuidor de uma fortuna crítica que supera a dos Tincoãs. Antigo grupo que Aleluia integrava nos anos 70.
Perguntei ao meu amigo: por que não acreditar na humanidade quando dela surgem flores desse imenso jardim em suspenso? No nosso mangue temos de tudo! Inclusive um tipo de paleta pluritonal com cores a fugir da vista. Saídas do mais belo arco-íris. Antenas como Mateus, Matias e von Trier, explicitam como podemos derrubar, ou desviar, das paredes que se erguem em nossos caminhos, tanto em aldeias como Cachoeira, BA, Aracaju, SE, quanto em territórios como o Brasil e a Dinamarca. Os milagres acontecem. Mas não esperemos apenas por eles.
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