Cenário de um tempo de rua em que não havia agenda ou calendário

Colunas

Tenho medo quando as palavras se escondem

Palavras também são seres brincantes e trazem as possibilidades da infância, com os mesmos riscos e prazeres de pular muros e correr nas ruas

21 de março de 2021

Lívio Oliveira

AINDA ME PERGUNTO o que fazer com as palavras. Às vezes opto pelo silêncio em torno de mim, mesmo que elas continuem povoando o meu interior, como uma nuvem de gafanhotos, deslocando-se por todos os órgãos e colonizando a mente. Se não posso com elas, pelo menos tenho que tangê-las, organizando-as em algum recanto, permitindo-me contá-las e cantá-las.

O ESFORÇO É TANTO, a ponto de esgotar as derradeiras energias do dia. Aí começa outra tarefa importante: salvar e reinventar o dia, para seguir vivendo em busca de todas as palavras.

ALGUMAS DELAS, as palavras, sequer existem nos dicionários, então é dado criá-las para que passem a compor a grande nuvem de gafanhotos, internalizando-os, até o limite do corpo e da mente. Será o dia de parar o motor, um dia não salvo, aquele em que os primeiros desses gafanhotos começarem a cair, deixando lacunas nesse zumbido vital, mesmo que típico somente dos loucos e poetas, que quase sempre trocam de papéis, momentânea ou definitivamente.

AS PALAVRAS também são seres brincantes e trazem para mim as possibilidades da infância, com os mesmos riscos e prazeres que eu vivia ao subir em árvores, pular muros, correr nas ruas de paralelepípedos escorregadios nos dias de chuva, ganhar mundos e explorar a cidade a pé, conquistando pequenos espaços aos poucos, cada bairro, cada rua, cada beco, cada casa de vizinhos.

SIM, SIM! Na época da inocência, eu e os meus amigos entrávamos nas casas dos vizinhos quase sem pedir licença. Jogávamos jogos de tabuleiro nas salas de estar ou mesmo futebol em quintais alheios, sem muitos anúncios ou agendamentos.

NAQUELE TEMPO sequer sabíamos o que era agenda ou calendário, mesmo que o tempo passasse, independente disso. Ambos, o tempo e os brincantes, nós nos ignorávamos saudavelmente. E também jogávamos com as palavras, com causos; estórias inventadas ou não; narrações fantásticas de coisas e de fatos que testemunhávamos; charadas; pilhérias; apelidos; xingamentos; até que a palavra já não bastasse e a luta tomasse o seu lugar. Como toma hoje o cotidiano, buscando expulsar a boa troca de palavras, o diálogo, a comunicação essencial com o outro.

ENGANAM-SE os poetas que acreditam ser os donos da palavra. Elas mandam, comandam caminhos, destinos. Também ditam a sua própria forma, como querem vir aos ouvidos e aos olhos nossos e desses inocentes e desavisados construtores de fórmulas mágicas que nunca estão certas na sua dosimetria.

UMA PALAVRA é como uma laranja. Parece que é uma pequena bola, até que nela passemos a lâmina de uma faca. Será cortada em tantas parcelas quanto ela mesma permitir. E poderá se transformar em sumo doce e bom.

Para isso, é imprescindível nos apaixonar. Pela palavra a paixão.

ELA, A PALAVRA, saciará a nossa sede, mas não atenderá todos os pedidos e desejos, eis que a palavra é infinita e, também como um gato, observadora fugaz e rebelde quanto àquele que lhe busca tocar. Nem todo toque é permitido. Se houver teimosia de quem detém o lápis, a palavra responderá com mais teimosia.

CADA PALAVRA possui a sua própria borracha de apagar. Por isso, há que guardar a palavra nas nuvens que sobrevoam as pontes até o texto e a beleza. As palavras só aceitam a beleza, o que não é sinônimo de forma, mas de liberdade e ritmo. As palavras gostam mesmo é de dançar. Dançam e voam e é isso que faz delas palavras.

TENHO MEDO quando as palavras se escondem. Começo a pensar que não mais voltarão, que ficarei ainda mais solitário no meu mundo particularíssimo. Não insisto, mesmo assim. Talvez devesse gritar por elas, fazer buscas, varreduras no centro da mente, no centro do mundo, no centro de mim. Termino aguardando o tempo que elas me dão, para rearrumar peças deslocadas dentro, algum osso da alma, algo partido diante da partida das palavras. Elas, em algum dia ensolarado ou discretamente nublado, retornam sempre à casa, até então fechada, até então sombria, trazendo luz e mel. Nunca sei como essas coisas se misturam, mas sei que são o meu alimento.