Uma manhã na oficina

Ítalo de Melo Ramalho

Não foi preciso os galos me avisarem que o sol estava para raiar. Ainda que tivesse escutado milhões de vezes Belchior informando que havia galos, noites e quintais, na noite que antecedeu aquele sábado, eu acordei bem antes do solo dos protagonistas de todas as manhãs. O motivo? Talvez uma situação banal para aqueles/as que sabem preencher os sagrados sábados com situações que poderiam ser resolvidas no meio da semana. O que me azucrinava na proximidade da manhã que vinha rasgando o breu da noite: era ir à oficina. 

Não era nada a perder o pouco que me resta de juízo: uma simples troca da lanterna traseira esquerda do carro e tudo estaria resolvido. O detalhe é que era sábado. E os sábados não foram criados para serem vividos em oficinas. De qualquer maneira a realização do destino me esperava como o bote de quem espia para atacar no instante certo. Sim, esse drama literário para discorrer um assunto tão pequeno é um elemento a caracterizar a imagem do que me esperava. Mas antes disso, uma tarde / noite de sexta-feira, que antecedeu a manhã do sábado, foi o suficiente para que eu criasse algumas situações que vissem a interferir nas já definidas obrigações. 

A primeira situação que se desenhara no meu engenho procrastinatório era comer na feira mungunzá doce feito no leite de coco que os/as quituteiros/as de Aracaju fazem como ninguém: o melhor do mundo! A segunda obrigação era lavar a garagem, a cozinha e o banheiro, que já tinham perdido, há tempos, o aroma floral dos desinfetantes artificiais. A terceira, temperar as carnes que já estavam descongeladas e que esperavam, entre outras especiarias, o tal lemon pepper (a febre da culinária nacional!). No entanto, nada disso foi capaz de deter o meu compromisso. Eu fui à oficina!

Chegando à oficina do Preto no bairro vizinho ao que moro, uma fila de carro me saudava de longe. E eu pensava: é hoje que só chego amanhã! Lá encontrei Preto, mecânico eletricista e dono, atordoado com a demanda de taxistas cobrando rapidez no serviço. E ele dizia: homi, tenha calma, eu sou só um. E o pessoal respondia: bem que podia ser dois, três e até quatro. Quem sabe um desses “seus” trabalhasse melhor que você. Preto, que é branco, levou aquilo como um insulto e quando passou por mim, como já temos uma pequena intimidade, disse: que bom que o senhor chegou. Vou deixar aquelas bestas batendo as panelas. Mas antes, vou dar um migué por lá e volto já para fazermos a troca. E eu respondi: vá pela sombra! Ele olhou, sorriu e disse: só ando nela!

Enquanto ele foi dar o migué dele eu fui tentar dar o meu no sábado. Saquei o celular do bolso e achando que estava seguro na minha sombra, dei de cara com um grupelho neopentecostal tentando me convencer a entrar no reino de alguma coisa chamada prosperidade. Para não criar atrito, uma irmã me pediu licença para orar por mim. Deixei. Mas ela desistiu logo que viu o meu signo tatuado no braço. Disse-me que aquele símbolo não era de Deus e desistiu da benção chamando os demais a se retirarem. 

Curioso, fui consultar o horóscopo e dizia que áries (meu signo) estava em movimento retrógado. Pensei: será que foi isso que me protegeu espantando a tal trupe da prosperidade? Foi quando lembrei de Preto e fui saber sobre o serviço, já que era só um migué que ele iria dar: o senhor poderia vir segunda-feira de meio-dia? Olhei para o focinho do peste e perguntei: você já consultou o seu horóscopo hoje? Será que tá retrógado? Apontou os olhos e fuzilou: retrógado tá o senhor que nem a turma de crente quis orar. Olhe, eu acho melhor o senhor tomar um banho de mar pra tirar essa quizila. E tem mais, deixe pra vir na quarta que na segunda é o meu dia de sextar. Fiquei pelas tabelas e antes de escutar Chico, não vi outra maneira de retribuir tanto “carinho” senão com um sonoro e educado: eu te pego na virada, fio do canso!

w.youtube.com/watch?v=qFx--6XeCaQ