Uma história nada comum sobre a visita de príncipes abissínios à Inglaterra em 1910

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UMA VISITA REAL

Os príncipes recusaram toda a alimentação que lhes foi ofertada, por motivos religiosos. Depois, a multidão apinhou-se para vê-los partir

21 de abril de 2022

No dia 10 de fevereiro de 1910 um grupo de príncipes abissínios em viagem pela Inglaterra solicitou oficialmente uma visita ao gigantesco navio almirante “Dreadnought”, o mais novo e poderoso navio de guerra da Marinha Real Inglesa, ancorado na baía de Weymouth, em Dorset. Os príncipes estavam acompanhados por um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros e por um intérprete.

Cercada do maior protocolo, a visita teve recepção ao som de gaita de foles e oficiais envergando farda de gala; mas aconteceram algumas gafes, cometidas pelos ingleses, que em lugar da bandeira do país dos visitantes hastearam a bandeira e executaram o hino nacional de Zanzibar, em vez da Abissínia. Os convidados foram muito corteses e evitaram qualquer comentário; e mostraram sua admiração a todos os pormenores técnicos que o almirante inglês, em pessoa, lhes forneceu sobre a embarcação. Ao final da visita, enquanto os convidados esperavam o trem para regressarem a Londres, a multidão apinhou-se na estação ferroviária para ver os príncipes, todos negros, usando altos turbantes e vestidos em seus trajes exóticos e coloridos.

E era tudo mentira, meu caro leitor. Esse fato ocorreu realmente, mas tudo foi uma peça pregada à Marinha Real Inglesa por Horace Cole, um rico e ocioso membro da alta sociedade londrina, ajudado pelo amigo Adrian Stephen, irmão da escritora Virginia Woolf. Para preparar a farsa, contratou Willy Clarckson, maquilador da atriz Sarah Bernardt, para fazer a caracterização do grupo que contava ainda com a própria Virginia, fazendo um dos príncipes; o jogador de críquete Anthony Buxton; Duncan Grant, um artista; Guy Ridley, filho de um juiz. Adrian Stephen fazia o papel de intérprete do grupo e o próprio Horace Cole, envergando fraque e cartola, se anunciava como sendo alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A audácia dos brincalhões foi espetacular. Na manhã da visita, Horace Cole dirigiu-se à estação de Paddington, em Londres, e pediu um comboio especial para levar os príncipes a Weymouth e um comitê para saudá-los na hora da partida. O chefe da estação reclamou do pedido feito à última hora mas a autoridade que emanava do “alto funcionário” ministerial era tamanha que organizou tudo a contento: reuniu os funcionários da estação para a saudação protocolar e mandou até colocar um tapete vermelho para que os príncipes subissem a bordo do trem.

 

Já havia sido enviado um telegrama falso em nome do Ministério ao almirante da frota, ordenando-lhe que dispensasse todas as atenções aos ilustres visitantes. Durante a visita, os príncipes recusaram toda a alimentação que lhes foi oferecida, alegando motivos religiosos; o verdadeiro motivo, porém, era porque poderiam estragar a maquilagem, onde todos usavam uma tinta escura no rosto e barbas e bigodes postiços. Para completar a caracterização, Cole mandou imprimir cartões de visita em uma língua africana e deu instruções para que seus colegas improvisassem uma língua própria para fazer perguntas e se dirigirem aos oficiais do navio, enquanto Adrian Stephen, o “intérprete”, traduzia o que os “príncipes” diziam para o inglês.

No trem de volta para Londres, a brincadeira chegou ao seu auge quando Cole explicou aos criados do vagão-restaurante que, segundo os hábitos abissínios, os príncipes podiam ser servidos apenas por pessoas que usassem luvas cinzentas de pele de cabrito. Quando o trem parou em Reading, um empregado foi enviado a comprar as luvas, para que os visitantes reais pudessem jantar.

Para se ter uma idéia da audácia do embuste, um dos militares de alta patente a bordo do navio era William Fisher, primo de Virginia Woolf (que está na foto sentada, à esquerda) e Adrian Stephen, que os conhecia muito bem; mas em nenhum momento notou que os príncipes eram seus primos. No dia seguinte, Cole enviou à imprensa o relato da história, acompanhado de uma foto do grupo e toda a Inglaterra se divertiu às custas da marinha inglesa.

O episódio é largamente documentado na Internet e ficou conhecido como “The Dreadnought Hoax”. Os embusteiros não sofreram qualquer dano porque, de acordo com as leis inglesas, eles não teriam cometido nenhum crime.

A conclusão é que ninguém escapa de ser enganado ou levado ao ridículo, nem mesmo a poderosa Marinha Real Inglesa, que já dominou os sete mares. Num caso assim, só resta relaxar, sorrir e torcer para não ser enganado outra vez.

Este texto foi publicado no meu livro Notícias da Existência do Mundo (Natal, Escribas,2017. p.112)


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