Personagens de um anoitecer em Florença. Foto: Internet/360Meridianos
Colunas
Em Experimento e Verbo, Lívio Oliveira refaz o traçado imaginário entre Paris, Florença e Buenos Aires, ao som de um tango de Gardel
17 de fevereiro de 2021
Por Lívio Oliveira
I
NO TÁXI negro e amarelo, após uma longa noite de tango e vinho, atravessava a cidade em direção a Ezeiza. Ainda sentia o perfume da dama de vestido colante, vermelho intenso, como os seus lábios de seda e de carne.
Decidi fazer do motorista um cúmplice dos meus sentimentos e sentidos. Inaugurei um cantar rouco e baixo de "El dia que me quieras" e percebi, ao observar um casal caminhando leve numa praça, o dia ainda acordando, que o motorista havia aderido ao intuito de musicar a cena. Colocou uma fita cassete com a voz de Carlos Gardel e a canção "Por una cabeza". Cantávamos alto, como se ninguém ouvisse, mesmo com as janelas abertas naquele dia de vento frio.
Havia uma história em cada um de nós.
Pelo menos uma, vivida e doída havia.
Ao terminarmos a canção em sofrível parceria com Gardel, dissemos cada um um nome de mulher. E o nome, que tratamos logo de apagar ao chegarmos ao aeroporto, era o mesmo. Era o mesmo, um único e cruel nome de mulher.
II
JÁ ANOITECIA em Florença. Eu havia circulado por entre igrejas e museus. Um mesmo olhar eu reconhecia em alguns desses lugares. Sempre fugidio, fazia-me perceber que se tratava de uma ruiva exuberante.
Estava só.
Eu não tinha noção da sua nacionalidade. Pensava que seria um erro tentar uma conversa. Apenas observava, até quando se retirava célere dos ambientes e parecia me convidar, como uma sereia, para me jogar no Arno.
Resisti algumas vezes. Abri o guarda-chuva quando a noite e a neblina vieram juntas. Sentei-me em algum banco de mármore e cochilei levemente, com um embrulho de livros sobre as minhas coxas.
Acordei com uma ventania forte e com o guarda-chuva rolando pela praça. Não fiz nenhum esforço para recuperá-lo. Não ousaria. Diante de mim, com os cabelos ruivos molhados, a dona de olhos verdes que pareciam duas esmeraldas sorria convidativa e falava numa língua que tinha tudo para ser emitida por anjos.
O barbante do pacote que eu deixara no colo se arrebentara e só sobraram alguns fragmentos dos Sonetos de Aretino. O anjo ruivo ria suave enquanto a noite caía diante da estátua metálica, em bronze, de um javali.
III
FOLHAS DE PLÁTANO bailavam até os meus pés. As botinas ficavam encobertas e eu ria. Sentia que estava plantado no jardim. Algumas crianças jogavam uma espécie de futebol aleatório. Não havia como seguir a bola com os olhos.
O olhar atravessou, então, o campo imenso e o rio e chegou até a Île de la Cité, onde se debruçava sobre uma murada a mulher de casaco e luvas negras. Ela mirava um ponto na água fria do Sena. Parecia ser um anel dourado, uma aliança, submergindo rápido.
Ainda vi o brilho, mesmo com o sol amortecido.
Em algum momento, a jovem dispersa ergueu o olhar. Eu já não via mais o brilho do anel no Sena. Percebia que brilhavam muito mais os olhos azuis da mulher de negro, agora banhados por grossas lágrimas, que rolavam libertas até as águas do rio que continuava o seu curso, desprezando o que se passava no seu entorno caudaloso.
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