Carlos de Souza é homenageado em publicação literária. Foto: Tribuna do Norte

É Típico!

Variações sobre o mesmo Carlão

Escrever nos faz lembrar de que estamos vivos. Alex de Souza relata momentos de amor, amizade e despedida ao lado do pai Carlos de Souza

16 de agosto de 2020

*Por Alex de Souza | Jornalista

Este texto pode ser melhor apreciado ao som de Grace (1994), por Jeff Buckley

Minha lembrança mais antiga de Carlão é de quando o conheci.

Nossas famílias (a dele e a de mamãe) vieram da Costa Branca; ele de Areia Branca, ela de Macau. Ali pelo começo dos anos 1970, os Souza ensaiavam o début na classe média natalense ao se estabelecerem no recém-criado conjunto de Neópolis, na novíssima Zona Sul de Natal. Os Borges ainda buscavam um bem literal lugar ao sol no camelódromo do Alecrim, em frente ao Relógio da avenida Dois. A amizade entre as famílias veio por obra de João Carlos Reis, nosso Tio Joãozinho, o João Canhenga. Ele casou com Salete, dos Gregório de Areia Branca, e promoveu a proximidade entre as linhagens. Seu primeiro varão, Rildo, era o grande amigo de Carlão naqueles loucos anos de juventude. Tão loucos que, quando a prima de Rildo apareceu grávida, bem, Carlão tratou logo de dizer que não era dele.

Foi o suficiente para criar um clima meio Montecchio, meio Capuleto. Meu avô Francisco Bonifácio, magoado, rompeu relações. Mamãe já trabalhava e ainda grávida arranjou um cara bacana, que resolveu criar o menino como se fosse dele. Bem estaria o que bem acaba, se não fosse pela cisma de Dona Delza, mãe de Carlão, em conhecer o bebê – que findou por ter o azar de ser a cara do indivíduo.

Pois bem.

Alguns anos depois – e muita conversa intermediada entre as partes, estamos em Tabatinga, na casa de veraneio de Joãozinho, em mais uma das festas de arromba tão peculiares daquela época. A todo momento, tentam me convencer a puxar conversa com um magrelo alto, branco feito vela, que eu nunca tinha visto por lá. Um amigo de Rildo, disseram. Sei não. Prefiro brincar na praia e passo a fugir sistematicamente de qualquer contato. Até que, pelo final da tarde, estou sentado na areia, olhando a maré encher, quando o cara chega e senta ao meu lado. Não lembro bem o teor da conversa, que no final se resume ao fato de que aquele ali era meu pai. “Ok, sempre achei meio estranho eu não parecer com meu pai”, respondi. “Mas não precisa se preocupar em perder seu pai. A gente pode ser amigo.”

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Meu amigo Carlão resolveu me dar uns livros, que até hoje procuro manter na família, apesar de bem detonados. Já estiveram com minha irmã Constância, com minha filha Helena, depois com o filho de Constância, Vinícius, e hoje estão com meu caçula, Ulisses. Um dia, quem sabe, estarão com Alexandre, filho de meu irmão Sérgio. Os mais antigos eram dois volumes dos Contos de Grimm, adaptados pela Ana Maria Machado, com desenhos maravilhosos de Ricardo Leite. Havia um terceiro, mas não lembro se perdi ou se nunca o tive. Outro era sobre Gnomos; não tinha autor, mas era grandão, super ilustrado, um deslumbre pros olhos.

Hoje percebo como aqueles presentes definiram para mim o que era a literatura. O fascínio e o terror daquelas histórias ilustradas me assombraram para sempre.

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Não demorou a começarem as visitas de fim de semana, pelo menos uma vez por mês. Mas adentrar o estranho mundo de Carlão era uma tarefa meio difícil para um menino de oito anos. O apartamento no Parque das Pedras, na BR 101, invariavelmente estava cheio de gente tomando cerveja e outras cositas más. Precisava atravessar Neópolis para fazer as refeições na casa de vovó Delza. Um dia cheguei lá e a geladeira só tinha duas garrafas d’água e um frango congelado. Foi na primeira vez em que vi um punk em carne e osso. No caso, só a Sopa D’Osso. Carlão perguntou o que eu gostava de ouvir. “Forró”, respondi. Passamos o fim de semana inteiro ouvindo Estilhaços, de Cátia de França. Era o mais próximo de forró que ele tinha. Falves Silva adorou, passou a tarde dançando com a namorada da época, cujo nome me escapou.

Sair de casa era ainda mais imprevisível. O meu rolé favorito era ir ao Sebo Vermelho, que ficava na rua Princesa Isabel, em frente ao edifício Barão do Rio Branco, num primeiro andar que tinha no térreo o Jimmy Lanches. Dava para ler vários gibis enquanto a conversa rendia com Abimael Silva. Porém, à noite, a gente entrava no Gol branco do coroa e caía na buraqueira. O destino podia ser o Chernobyl, onde a janta era um sanduíche de creme de frango com keep cooler. Sentado ao balcão, interroguei João Gualberto Aguiar por um tempão, com perguntas do tipo “quantas poesias você já escreveu?”. Ou podíamos terminar na Bodega da Praça, na Vila de Ponta Negra. Ou numa festa na casa de alguém. Naquela época, o melhor amigo de papai era Sebastião Soares, ou Tião Soares, ou Macaco Tião (por causa de um bicho de zoológico que ficou famoso na tevê), ou só Dião. Foi com ele que aprendi a comer pizza sem maionese e catchup, só azeite. Ele gostava de apertar as banhas da minha barriga com as duas mãos e gritar: “Gordinhooooo”. Eu odiava.

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A pedra angular dos Souza era Josefa Moura, uma mulher tão determinada que um dia adotou para si o nome de Delza e nunca mais foi chamada de outra forma. Vovó segurava a onda de todo mundo enquanto o velho Aldenor Cândido navegava o mundo pela marinha mercante. Os filhos, Francisco Carlos, Francisca Sandra e Francisco Cláudio, para ela, só mereciam do bom e do melhor. Carlão nasceu quando ela tinha pouco mais de 16 anos, mas depois ficou difícil segurar outra gravidez. Sempre desconfiei que ela tivesse eritroblastose fetal, mas ninguém sabe ao certo. Devota de São Francisco, dedicou os dois filhos que vingaram ao santo. Quando papai, aos 17 anos, encontrou um pacote na porta de casa e entrou chorando com uma criança nos braços, não havia dúvidas que havia chegado mais um Francisco na família.

Dona Delza cuidava de tudo e de todos, e ficava sempre em segundo plano. Quando se sentiu mal e foi levada muito a contragosto para o hospital, havia pouco a ser feito para combater uma infecção já generalizada. Sua perda foi um choque para a família, mas principalmente para Carlão, que nunca mais foi o mesmo depois de 2011. Seu alcoolismo piorou bastante e as bebedeiras ficaram cada vez menos divertidas.

Na casa do Pium, onde viveu sua última década ao lado de Sônia, havia muito tédio e mansidão, mas também muita amargura.

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A vida é vária, é excesso, multiplicidade. A morte é um nada, é ausência. Já a doença, a doença é uma sombra. Nunca saberemos quando Carlão adoeceu. O primeiro sinal foi um piripaque, no segundo turno das eleições de 2019. Após a vitória de Bolsonaro ele passou mal, no dia seguinte, desmaiando e vomitando sangue, resultado de três dias de birita. Era um sinal, que foi mal interpretado. Achamos que era apenas um mal súbito.

Eu e o resto da família ficamos muito preocupados com o ocorrido, mas ele minimizou o caso. Para complicar, um gastro preguiçoso investigou apenas superficialmente e liberou uma de leve – o que com Carlão era um liberou geral.

Lembro que cheguei na casa do Pium, o abracei e chorei. Não estava preparado para perdê-lo de uma forma tão estúpida. Ele prometeu que iria se cuidar, mas a promessa não virou o mês.

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O último pifão de Carlão foi no carnaval do ano passado. Foi 100% Carlão. Ele começou na sexta nos bares do Pium, virou a noite no bloco da Aurora, famoso por varar a madrugada, e, no sábado de tarde, estava em Ponta Negra, à procura de Adriano de Sousa e Flavia Assaf. Foi quando o encontrei, perto da praça do Gringo’s, naquele modelo. Ainda assim, era a mesma criatura doce de sempre, e ainda encantou com sua conversa mole vários amigos, como Jeanne Araújo, Cefas Carvalho e Alexandre Honório, que se revezaram na sua mesa.

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Papai fazia parte de uma geração de jornalistas que viveram o auge e a começo da derrocada da profissão. Ele começou na Tribuna, nos anos 80, como repórter. Depois, formou a equipe responsável pela implantação da TV Cabugi, junto com Osair Vasconcelos, Adriano de Sousa, Sebastião Vicente, Remo Macedo e muitos outros. Voltou à Tribuna, onde foi editor. Depois aceitou o convite de Alfredo Lobo e foi para o Diário de Natal, onde criou o Muito, caderno cultural que marcou a imprensa local, com seu projeto gráfico arrojado e uma equipe afiada formada por ele, Moisés de Lima e Rodrigo Hammer.

Porém, depois que saiu de forma intempestiva do Diário, porque simplesmente encheu o saco, papai nunca mais trabalhou por longos períodos no meio jornalístico. Todas as oportunidades que surgiram foram em nome da amizade. Foi assim que ele fez algumas campanhas políticas pelo interior com Zé Ivan e tornou-se o substituto de Woden Madruga no seu Jornal de WM, um dos espaços mais valorizados da imprensa potiguar. O último emprego fixo de papai foi na Secretaria de Comunicação do Governo Rosalba Ciarlini, a convite de Alexandre Mulatinho.

Ainda assim, papai era apaixonado pela redação, especialmente da Tribuna, onde conviveu por duas décadas ou mais com amigos diletos e queridos, como Carlos Peixoto, Vicente Neto, Airton Bulhões, Carlinhos Black, Ana Silva, João Maria Alves, Cinthia Lopes e vários outros que vão me desculpar pelo sentimentalismo barato, porque preciso parar por aqui.

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Toda uma geração de jornalistas do começo dos anos 90 passou pelas festas na casa de papai em Neópolis. Alexandre Mulatinho, ainda foca, tinha lugar cativo no sofá da sala. Um dia, papai nos trancou no quarto onde ficava a televisão e nos fez assistir a “Sociedade dos Poetas Mortos”. Não quem sei chorou mais, se foi eu ou ele. Também naquela casa, com seu gramado no jardim frontal e o frondoso jambeiro, começou (ao menos na minha cabeça) o namoro de Carlos Magno Araújo e Rosa Lúcia Andrade.

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Carlão não se contentou em influenciar apenas uma geração. Quando adolesci, passei a levar meus amigos, que não eram poucos, para a casa de Neópolis. Papai sempre era o mais louco da turma e adotou vários dos meus amigos como filhos. Deu no que deu: vários de nós viraram jornalistas, como Everton Dantas, Aristeu Araújo, Alexandre Honório, Ana Paula Silva.

Em 1995, fizemos nosso primeiro fanzine, chamado Ecuador. Carlão e Augusto Lula quase enlouquecem tentando domar o nosso computador 486 para que conseguíssemos montar a boneca da publicação. Ele não pensou duas vezes em juntar aquela tropa de jovens loucos, em 1999, para fazer seu livro Cachorro Magro, poema que havia ganhado naquele ano o prêmio Othoniel Menezes. O que me impressionou foi que, enquanto editava loucamente seu livro premiado, ele tinha o mesmo tesão de quando nos ajudou a montar um efêmero fanzine.

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Aqui merece um adendo sobre a obra literária de papai, que não vou me arriscar a comentar criticamente. Apenas vou destacar um traço que sempre perpassou a vida e a obra de Carlão: a inquietação. De modo que Carlão, o escritor, nunca esteve satisfeito com uma forma, ou uma fórmula. Isso explicaria o fato de ele ter publicado pouco, e cada livro uma experimentação num gênero diferente. Entre a Crônica da Banalidade, uma novela beatnik tardia sobre o tédio e a loucura, e o poema épico de Cachorro Magro há uma década de desvario que justificaria o hiato tanto temático quanto formal entre as duas obras. Porém, como explicar suas obras intrinsecamente potiguares, como a peça É Tudo Fogo de Palha e o romance Cidade dos Reis? E ainda o volume de contos Urbi, nossa última ação entre amigos (eu, ele e Abimael Silva) com seus traços borgianos? Acho difícil julgar a obra de Carlão porque ela me parece sempre recomeçar, como se surgisse do nada, apesar de, para mim, cada livro revelar um face que eu conhecia muito bem.

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Carlão viveu como um gigante (um troll, dirão alguns), e morreu como um passarinho. As primeiras dores na coluna vieram exatamente no Dia das Mães e não passaram mais. Para mim, que morava em outra cidade e visitava papai praticamente uma vez por mês, foi assustador. Primeiro ele estava sentado em sua poltrona, reclamando das dores. No fim de semana seguinte em que o encontrei, ele estava sentado no sofá, como se fosse um divã, para aguentar as dores. Na visita seguinte, ele já estava de cama, sem poder se levantar. A cada visita, novos analgésicos, até por fim precisar se render à morfina. Entre o início do tratamento contra o câncer e sua morte foram três semanas, das quais duas passei ao lado dele. Foram os piores quinze dias de toda minha vida. Além da sentença de morte, que foi nos dada pelos médicos, tínhamos que presenciar, aos poucos e dolorosamente, a sua partida. Carlão não tinha esse nome à toa: era um corpanzil de cento e tantos quilos bastante mal distribuídos em 1,75m de altura. Mas a doença levou a mobilidade e a capacidade de se alimentar, deixando apenas um corpo cada vez mais magro e frágil.

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Acamado, Carlão se ressentia de ter perdido os pequenos prazeres que preenchiam seu cotidiano, como as redes sociais, as séries televisivas e, principalmente, os livros. Deitado em sua cama, ele pedia para que abríssemos a janela do quarto, que ficava logo acima da sua cabeça, para observar a copa das árvores de nossa vizinha e o céu azulado do Pium. Ateu inveterado, ele olhou para mim e disse: “Ali é Deus. Nós já fizemos as pazes”.

Durante sua enfermidade, ele recebeu visitas de amigos que encapsularam cada momento especial de sua vida. Estiveram com ele, naqueles momentos derradeiros, Adriano de Sousa, talvez o amigo mais especial que já teve, e sua companheira Flavia Assaf; Everton Dantas e Elisa Elsie, os “filhos adotivos” dos quais ele tanto se orgulhava; seus grandes parceiros de farra, Tião Soares e Abimael Silva, que saíram mudos e abalados de tanto sofrimento; Moura Neto, o companheiro de faculdade, amigo para toda a vida; Carlos Peixoto, o eterno colega de redação; mamãe, vovô Aldenor, meu irmão Sergio, as várias facetas de sua vida privada; Tácito Costa e Demétrio Diniz, os amigos de letras.

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O último domingo de Carlão foi Dia dos Pais e passamos, nós, os filhos, juntos com ele. Lá pelas tantas reclamei da sovaqueira que o calor provocava nele, só para provocar. Ele ficou puto, óbvio, nunca foi de aguentar muito minhas provocações, e resolveu se levantar da cama a qualquer custo para tomar um banho. Pois lá fomos, eu, minha companheira Claudia, Sônia e Constância, carregar o homem até o banheiro. Após um esforço tremendo, sentamo-lo no vaso e demos aquele banho, depois fizemos o percurso de volta para a cama. Exausto, Carlão tremia feito vara verde. Deitei com ele na cama e o abracei, para tentar aquecê-lo e diminuir os tremores. Foi quando ele disse: “Hoje nós fizemos um acordo com Deus”. Respondi: “Papai, lembre que ‘o caminho dos excessos leva ao palácio da sabedoria’”. “Eu sei, meu filho. Mas quem disse isso foi um louco.”

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A penúltima semana de Carlão foi no Hospital Luiz Antônio, devido a uma infecção urinária e a desnutrição provocada pelo câncer, pois ele estava há praticamente 20 dias sem se alimentar e bastante desidratado. O fato é que, apesar da melhora física que a internação provocou, o fardo mental de estar fora de casa foi demais para ele. Alternando momentos de bastante melhora com lapsos de delírios, convenci Carlão a tentar ler um pouco, no meu kindle, me aproveitando de um momento de melhora.  Coloquei para ele o prefácio que Ray Bradbury escreveu para seu livro de ensaios Zen e a Arte da Escrita. Um trecho dizia assim:

“Primeiro e mais importante, escrever nos faz lembrar de que estamos vivos e de que isso é uma dádiva e um privilégio, não um direito. Devemos ganhar a vida, já que ela nos foi dada. A vida pede recompensas porque ela nos proveu de ânimo.

Então, embora a nossa arte não possa, por mais que desejemos, livrar-nos da guerra, da privação, inveja, cobiça, velhice ou morte, pode nos revitalizar no meio disso tudo. Em segundo lugar, viver é sobreviver. Qualquer arte, qualquer bom trabalho naturalmente é isso. Não escrever, para muitos de nós é morrer.”

Cansado, ele parou e disse: “Que bonito, man.”

Realmente, muito bonito, pai.

(*) Texto publicado originalmente no Jornal O Galo da Fundação José Augusto em 15.08.2020.

Como o autor recomentou:

Grace | Jeff Buckley (1966-1997)