Quando os cenários mais perenes e antigos parecem mais jovens do que nós

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VI. Desde

Diante da vida líquida do mundo atual, a compreensão de que o passado é jovem como um menino

03 de julho de 2024

Ítalo de Melo Ramalho

A crônica desta semana é relativa a algo que tem mexido um pouco comigo. E aqui, em Aju, um tantinho mais. Morar nesta cidade de Oxum é, justamente, o que faz o cenário se tornar ainda mais curioso. Adianto que não é nada que venha a tirar meu sono e tampouco atrapalhar o meu dia de olhos abertos. Mas é pela condição de estar com os olhos abertos, entre outras coisas, que venho notando as fachadas comerciais desta cidade. Em especial as das padarias, dos bares, dos restaurantes, de estabelecimentos que me parecem herdados dos/das pais/mães para os/as filhos/as, como  “Panificadora Mendonça (Desde de 1986)”.    

É curioso como Zygmunt Bauman, o sociólogo, filósofo e teórico polonês radicado na Inglaterra, conceituou a liquidez como matéria da sociedade. Que metáfora rica: uma sociedade líquida. Uma sociedade que se esvai por entre os dedos; escorregadia e que não consegue se segurar em nada e nem se deixar ser segurada por coisa alguma. O tempo, o afeto, o espaço, as relações são extremamente fluídos e correm sempre para o ralo. Simplesmente surreal imaginar essa circunstância há 30 anos pelos labirintos por onde andei. Por esse motivo percebo, nessas fachadas, o insólito reverberado nas datas postas abaixo do nome das casas comerciais. E é um número relevante dessas que se apresentam pelas vielas. Parece até que alguns setores da sociedade aracajuana não foram atingidos pela lógica baumaniana.

Outro dia, acompanhando um perfil nas redes sociais (ou antissociais com diz o ator Pedro Cardoso, o Augustinho Carrara do seriado A grande família) vi que foram organizadas num carrossel as fotografias dos 10 bares mais antigos da cidade. Nem esperei mais que uma piscadela: fui ligeiro vasculhar quais eram! Eu gosto de bar, pois acredito que é o ambiente mais democrático até a oitava cerveja. Depois de tomadas, as pessoas tornam-se amigas e o que era doce passa a ser insosso. Enfim, remexendo as fachadas dos botecos postados, notei que o mais antigo é de 1960. Ou seja: o bar tem 64 anos. E o segundo mais velho é de 1968. Os demais eram da década seguinte: 1970. Como dizia uma personagem do Chico Anísio: Choquei!

Tomar conhecimento dessa informação terminou fechando a tampa do meu caixão. Eu que sou de 1974 e moro numa das capitais do Brasil que tem 169 anos, e que entre os 10 bares mais antigos da cidade, 8 são mais novos que eu. Além de imaginar trilhões de situações, uma me pegou: como seria o diálogo entre os aracajuanos/as marcando de tomar uma cerveja num bar raiz:

Oi.

Olá.

Vamo tomar uma?

Vamo!

Onde?

Sei lá. Tem alguma sugestão?

Sim, aquele da orla bem tradição.

Ah, sei. Aquele bem raiz, né?

É.

Esse mesmo. Meu avô, antes de morrer de cirrose, bebia lá.

É o cabrunco! Ô pêga!

Esse bar da orla tem mais de 40 e menos de 45. Um menino. Um jovem boteco. Senti-me uma múmia moderna, pós-moderna, contemporânea, sei lá que nome se dá. De alguma forma desconstruí e reconstruí a imagem da cidade como sendo ela, Aracaju, o objeto de pesquisa do pensador polonês para comprovar a sua tese sobre a sociedade líquida.